29.4.08

Sim, é essa a palavra.

Há palavras que cada vez usamos menos, ou pelo menos eu, para não generalizar, cada vez uso menos. Ou uso, mesmo que de uma forma sentida, sem lhe atribuir o verdadeiro significado, o que as remete para um contexto algo superficial. Não vou ao ponto de dizer leviano, mas superficial. Palavras que parecem esquecidas em caixas, onde o coração se esquece de entrar, caixas que se abrem quando menos esperamos. O mais novo cá de casa, possuidor de uma energia inesgotável, sem que eu saiba onde poderá ele armazená-la em tão pequeno corpinho de três anos, muitas vezes ao final do dia sucumbe irremediavelmente ao cansaço. É bom de ver que, por si só, este pequeno aspecto exige uma gestão apurada e meticulosa do meu quotidiano, com banhos e jantares antecipados, não vá ele ser descoberto de olhos fechados no sofá da sala, ainda o telejornal não começou. Este fim-de-semana não foi, com muita pena minha, uma excepção que confirmasse a regra que descrevi. Já podem imaginar as manhãs... E lá estávamos os dois, pouco depois das sete da manhã, a tomar o pequeno almoço antes de nos entregarmos a tarefas madrugadoras. Vemos os DVDs (dele), vemos os bonecos animados (para ele), jogamos Playstation com os jogos (dele e da irmã), fazemos construções com o Lego (dele), jogamos umas partidas de matraquilhos (dele), às vezes brigamos por causa do feitio (dele), conto-lhe histórias (para ele) e desenhamos. No Domingo pegou em duas folhas de papel A3, foi buscar as canetas de feltro e, numa sala que já estava um pandemónio, pediu-me que desenhasse com ele, dando-me um briefing concreto. Pelo menos, e ao contrário de muitos que me habituei a receber, o dele era objectivo. Eu devia desenhar um barco à vela no mar e umas montanhas. Ele encarregar-se-ia de desenhar um fantasma. O caldo quase se entornou de tanta foice em seara alheia o rapaz ter metido. Por fim contente, admirando as obras primas. Entretanto acorda a mais nova, que os mais velhos, esses, há que esperar sentado, e a rotina muda de azimute.

(Horas, muitas horas depois).

No fim do dia, já com os mais novos deitados, arrasto-me, cansado, mas decido que o tempo e a energia que me restam são dedicadas a mim e a uma terapia que não me renova o corpo, mas dá saúde ao espírito e à mente. Escrevo e desconverso, mantendo-me atento ao relógio do computador, com os minutos a passarem numa correria implacável. Chega a hora de me deitar. Desligo o pc, arrumo a mesa de trabalho, dobro os óculos, guardo-os e preparo-me para uma rápida verificação na pasta que uso no dia-a-dia. Eis senão quando sou surpreendido ao ver uns papéis dobrados, dentro da minha pasta. Eram os desenhos, que ele tinha finalizado, dando um derradeiro toque pessoal e escrevendo o que julgo ser a sua assinatura. Pelo menos duas letras do nome dele são claramente perceptíveis. Assim, sem me dizer nada, e desejando surpreender o pai, numa dádiva tão simples e tão sentida. Senti uma imensa, infinita e indescritível ternura. Ternura.

14 comentários:

CPrice disse...

ternura palavra desusada .. ternura que lhe (nos) inspira a atitude do Infante .. Amor que você lhe inspira Caro Mike para que dessas atitudes se lembre.
Feliz a reciprocidade. E este seu texto que gostei muito de ler.

José, o Alfredo disse...

Sacanas dos putos não páram de nos deixar à nora, à procura das tais palavras desusadas.

Anónimo disse...

Ora, Miss Once...
Obrigado. :)

Anónimo disse...

Irra josé, que é mesmo assim como dizes... raça do catraio (risos).

cristina ribeiro disse...

Já me habituei a encontrar aqui textos assim, Mike: ternurentos...

Anónimo disse...

Cristina, :)

Anónimo disse...

e o pior eh!..atencao...drum roll...quando queremos ensinar a andar de bicicleta....ahaha!!!..akele instante em que tiram os pes do asfalto e a nossa alma tambem fica sem chao...

- "espera...nao vas tao rapido....oops....heyyyyyyy.....olha o lago!!!"

Pai corre, alcanca filho, nao consegue parar, enrola-se na bicicleta e no filho...escapa o lago...successo!!! mas...catrapum....tudo pela relva molhada da geada da noite passada na bohemia sem o filho...pai, bicicleta e filho enrolam-se no abraco do daqui-nao-passas..o chao isto eh!

- "mas tas bem?"....

resposta....

- "daddy, that was fun! let's do it again...."

- "Again?...but it's the 3rd time today for Christ sake"...

Realmente...ternurento como o raio o sacana....lol...

ps: tenho uns jeans da bicicleta do puto, facilmente reconheciveis pelas marcas verdes no joelho, na perna, e no...err...traseiro...

abracos e saudades...

ana v. disse...

Uma ternura, de facto. O texto, delicioso, e a relação pai-filho que ele deixa entender.

Anónimo disse...

Não há descanso... e ainda bem, mrfd ;).
Abraço.

Anónimo disse...

Obrigado, AV :)

PSB disse...

Mike
Estas cumplicidades e estes mimos evaporam por completo o 'trabalho' que a educação dos Filhos nos dá. São, sem dúvida, a dádiva mais gratificante. E enchem-nos a alma. Para sempre. Os laços que se criam nestas teias de ternura partilhada são indestrutíveis e reflectem-se na relação futura. É assim que se constrói este Amor indescritível que temos pelos nossos Filhos.
Um abraço.

Anónimo disse...

Evaporam... palavra lida no seu comentário, que me fez sorrir. Porque é mesmo assim como diz meu caro. E voltei a sorrir porque pensei nesta manhã... é que o rapazito estava neura... mas esse Amor de que fala também se constrói em manhãs como a de hoje.
Abraço, Pedro.

fugidia disse...

Que ternura deliciosa :-)

Anónimo disse...

fugidia... :)

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