28.9.07

E com a fé não se brinca.

Conheci a Marília (o nome verdadeiro não é este, obviamente) em S. Paulo. Era uma das senhoras que tratava da limpeza e de servir os cafés na empresa onde trabalhei. Marília era (e espero que continue a ser) uma jovem mãe de três filhos, o mais velho era uma menina que devia ter na altura para aí 10 anitos. Os outros dois vinham em escadinha, como costumamos dizer. Jovem mãe e sozinha que o marido ao terceiro abalou (está visto que meteu saias) e ela nunca mais lhe pôs a vista em cima quanto mais numa mísera nota de cinco reais. A Marília vivia com os filhos na Favela Paraisópolis e, nas suas próprias palavras, rezava e dava graças a Deus todos os dias pelo menos por dois motivos: por ter um emprego (de empregada da limpeza!) à sua espera todas as manhãs e o salário no dia certo todas as quinzenas, e para que os filhos se mantivessem no caminho do bem e estudassem para terem empregos melhores que o dela. Um dia, daqueles em que à chuva se passa a chamar dilúvio, daquela chuva torrencial que arrasta tudo à sua frente, ouvi-a a rezar baixinho na copa da empresa, pedindo a Nossa Senhora Aparecida que lhe cuidasse da prole que tinha ficado sozinha em casa (o significado de casa nas favelas é algo diferente, para ser simpático, daquele que atribuímos quando nos referimos ao lar que nos espera no dito regresso a casa). Ela não me viu e eu, por respeito, ou por outro motivo que não consigo definir, afastei-me e deixei-a a sós na sua prece... a sós não, com a Nossa Senhora Aparecida. À hora de almoço, que o assunto não me saía da cabeça, comentei-o com um colega, acrescentando despropositadamente, a minha opinião sobre a situação insólita... feito estúpido, concluí eu, o senhor instruído, pouco depois de ouvir a explicação. Veja bem, caro Mike, ela não quer faltar ao emprego, o seu único ganha pão, pode até ter um celular, mas os filhos não têm de certeza e telefone em casa, se tem, o que eu duvido, hoje nem deve funcionar... veja bem companheiro, ela fica aqui num desespero e só volta para casa tarde, no final do dia, sem saber nada deles... e quando chega, o casebre está de pé e é recebida com os sorrisos dos seus três filhos... você está entendendo Mike?... depois de passar o dia a rezar a Nossa Senhora Aparecida... acha que ela deve isso a quem? que ela tem fé em quem? Entendi sim e engoli em seco... pois, vá-se lá dizer à Marília que a fé, tal como vem nos dicionários não existe... Eu cá nunca mais “brinquei” com a fé, principalmente com a dos outros.

Bem, haja fé num bom fim-de-semana, que é o que eu desejo a todos, incluindo a Marília.
;)

27.9.07

Será que tenho fé?

Fé... o mesmo que acreditar ou confiar, sem lhe estarem associadas evidências físicas reconhecidas pela comunidade científica. Fé... palavra que uso por vezes (não usamos todos nós?) desprovida de conteúdo, significado ou convicção religiosa. Tive fé que a minha filha se formasse, tive fé que o meu filho entrasse na faculdade, não tinha muita fé na adaptação do mais novo à nova escola, às vezes tenho fé no Sporting, outras não, não tenho muita fé (mas tenho alguma) que me saia o Euro Milhões este fim-de-semana... enfim, a minha fé parece que é diferente da fé verdadeira, da fé que vem nos dicionários, da fé de que se fala nas igrejas. Isso quer dizer que não é fé? É que ao meu acreditar ou confiar estão associadas evidências físicas reconhecidas pela comunidade científica. Tive fé na mais velha porque lhe reconheci trabalho e dedicação; tive fé no mais velho porque, a certa altura senti que ele acordou para a vida e o vi a estudar (e paguei explicações de matemática); não tinha muita fé na adaptação do caçula por isso mesmo, por ser caçula e porque mudanças de escolas antes dos três anos nunca são bem vindas (não preciso de nenhum psicólogo para saber isso); tenho fé no Sporting quando a equipa está a jogar bem, caso contrário a fé esbate-se ou vai-se, mesmo; e a pouca fé no Euro Milhões deixa de ser pouca para se transformar em nenhuma se não jogar (por falar nisso, há que pôr um lembrete no sacrista do zingarelho). Raios, alguém me ajuda? O que eu tenho é fé ou não? Então se é, como explicar o facto de lhe estarem associadas evidências físicas? Acho que o que eu tenho às vezes não é fé... é outra coisa qualquer. Então porque é que lhe chamo fé?

25.9.07

Os fins justificam os meios (?)

O título do artigo do Público, da autoria de José Victor Malheiros, é “50 por cento de notícias positivas”. O sub-título é “A ênfase nas notícias positivas tem fins diferentes na Rússia e no Ocidente, mas a tendência é a mesma”. Tentando resumir o artigo, e no que diz respeito ao lado russo, transcrevo a explicação que um editor da Russia News Service, a maior rede de rádio privada russa, deu ao New York Times: “Quando falamos de mortes, violência ou pobreza, isso não é positivo. Se a Bolsa subir, isso é positivo. Uma previsão meteorológica também pode ser positiva”. Para bom entendedor meia palavra basta e no Kremlin de Putin a liberdade, seja de imprensa ou outra qualquer, é um bem escasso, já a censura para perpetuar no poder que lá está e ampliá-lo, há de sobra. Ainda do lado russo e para finalizar esta tese do bem escasso, um director do diário Kommersant disse que o oposicionista Garry Kasparov (esse mesmo, o ex-campeão mundial de xadrez e actual chairman do United Civil Front) poderia perfeitamente ser entrevistado desde que concordasse em abster-se a fazer declarações extremistas. No Ocidente o ênfase nas notícias positivas é o mesmo em nome do interesse do público (não confundir com interesse público) e da necessidade de obtenção de lucros por parte das empresas. Aos jornalistas pedem-se notícias mais “positivas”, mais frescas, mais leves, mais alegres, com mais espaço para a beautiful people, de preferência sem pobres nem negros nas capas, etc, etc. Lá como cá, parece que os fins, apesar de diferentes, justificam os meios. E eu, que tal como o meu pai o fazia, olho de soslaio e com desconfiança para as notícias (não para os jornalistas), dou por mim quase a defender uma liberdade de imprensa que, sem me orgulhar disso, por vezes ponho em causa por muitas e variadas razões. Pelo sim, pelo não, acho que vou manter o papel de provedor em relação aos meus filhos, tal qual a censura que tanto critiquei no passado salazarista e continuo a criticar, no que diz respeito às notícias que lêem, ouvem e vêem. E não é que os fins justificam mesmo os meios?

19.9.07

Ela é a mais aterrorizadora Serial Killer que existe.

Anopheles é uma assassina solitária, actuando sozinha, geralmente em regiões rurais ou semi-rurais, no período da noite, entre o crepúsculo e o amanhecer. É temível, devastadora, mas até a desculpamos por não lhe reconhecermos a existência de inteligência, fazendo o que faz porque lhe está no sangue, o mesmo que procura nos humanos, infectando-o muitas vezes de forma irreparável ou fatal, principalmente quando de crianças se trata. Esta fêmea de mosquito, transmissora da malária não é inteligente, mas Jeffrey D. Sachs, director do Earth Institute da Universidade da Columbia, dá mostras de o ser, pela forma como aborda um dos 21 problemas na Foreign Policy – a Malária – e pela solução que preconiza para o debelar. A malária mata 7.000 crianças por dia (segundo o relatório da OMS, morre uma criança africana a cada 30 segundos!). Este ano, 1 a 3 milhões de crianças (o Continente africano é o mais devastado) morrerão, provavelmente como resultado da doença transmitida pelos mosquitos. Diz Jeffrey D. Sachs que não há desculpa para a falta de acção porque a malária é possível prevenir e é totalmente tratável. Na sua exposição, com uma óbvia carga humanitária, ele não deixa de abordar outros problemas colaterias como por exemplo o abrandamento da transição demográfica e o bloquear de passos para as populações sairem da probreza. No seu entender, um simples pacote de tecnologias poderia contribuir para se controlar a malária em toda a África até 2010. Ele e a sua equipa elaboraram cálculos que apontam para custos que uma África empobrecida nunca poderia pagar, mas que não passam de trocos para os países ricos. Estamos a falar de 3 dólares por pessoa, cerca de 2,5 euros, os quinhentos paus da ordem que não chegam para eu comprar os dois maços de tabaco que consumo por dia. Não há desculpa para a falta de acção. De facto, não há.

África (XII). A teoria (e a práctica) da batata (que ficou por explicar).

Samarra vestida e apertada até ao último botão, gola puxada para cima, gorro montanhês na cabeça e passa-montanha no bolso, não fosse o cacimbo apertar durante a viagem feita no robusto, barulhento e lento Willys, sem portas nem janelas que se fechassem, quanto mais chaufage que os aquecesse durante os 150 quilómetros que os esperavam. Tempo para uma breve despedida da mãe e do irmão que não conseguia esconder um olhar de inveja. O sol já se tinha posto e o pai, que gostava de conduzir de noite, levantou a cabeça para o céu carregado, prenúncio de uma viagem molhada. Sem chuva normalmente chegavam ao Balombo, onde dormiam em casa do tio Doro (na realidade o nome do tio era Teodoro), por volta das nove da noite, mas com chuva, mesmo que fosse a molha-tolos, não chegariam antes das onze. Poucas horas de sono até à alvorada sem despertador que a dormida era de portadas abertas e o sol não pedia licença para entrar. Nessas manhãs, lá no mato, até o velho e rabugento galo se enervava, tal era a madrugadora azáfama, mesmo antes dele afinar as cordas vocais para o cantar matinal. Rebolava-se a rir com a cara do pobre galo, de bico baixo e ramelas ainda nos olhos, quando uns sonoros pontapés na capoeira o faziam erguer da cama de palha na companhia de meia dúzia de damas que também alvoroçadas com as biqueiradas, cacarejavam loucas, ainda só um pedacinho do sol que se erguia se vislumbrava no horizonte a perder de vista. Sorriu quando o pai, depois de mirar o céu, desviou o olhar para ele. Estão duas batatas no jipe, pai. O sorriso retribuído pelo pai foi recebido com o orgulho de um rapaz feito homem, que os preparativos da caça eram responsabilidade sua e nunca, jamais, se poderia esquecer desse detalhe. Nessa noite era quase certo que dariam uso a pelo menos uma delas porque o limpa pára-brisas não era fiável e se a chuva se tornasse chuvada ou intempérie, a batata cortada ao meio e esfregada no vidro faria o seu efeito. Prontos para a aventura, que na cabeça dele a viagem tinha esse nome. Só faltava prender os cinturões um ao outro que cintos de segurança só os vira nos aviões, não fosse ele adormecer, terminando borda fora numa curva mais apertada. A chuva, ameaçadora, acabaria por chegar nessa noite, escura e sombria, iluminando o sorriso feliz do rapaz.

“Ao deixar que os mercados controlem os nossos destinos, perdemos de vista o que significa ser suficientemente rico”. (Howard Gardner)

Volto com a Foreign Policy agora partilhando um artigo de fundo, mais denso que o de Cuba de Fidel e que aborda um tema pertinente através das opiniões de pensadores reputados e credíveis: 21 Soluções para salvar o Mundo. Nesse artigo são colocados 21 problemas para os quais são apresentadas 21 soluções. Problemas relevantes que vão desde a convivência com regimes ditatoriais até à malária, passando pela pobreza, SIDA, segurança na internet, guerra contra o terror, desigualdade, etc. Escolhi a desigualdade onde Howard Gardner, professor de Conhecimento e Educação na Harvard Graduate School of Education aponta o dedo à situação dos “escandalosamente ricos” e expõe a solução por ele preconizada. Porquê? Porque me considero um liberal, por ser um defensor da liberdade dos mercados e porque o artigo teve o condão de me ter posto a pensar sobre estas minhas crenças. “Ao deixar que os mercados controlem os nossos destinos, perdemos de vista o que significa ser suficientemente rico”. É assim, com esta visão, que Howard Gardner abre as hostilidades àcerca do problema da desigualdade, desenvolvendo o tema com a propriedade de um estudioso, acrescentando que a acumulação e transmissão de riqueza entre gerações nos Estados Unidos já foi longe demais. Exemplos dá vários, mas retive aquele em que ele menciona a realidade de um jovem director dum hedge-fund conseguir levar para casa uma soma próxima do PIB de um pequeno país, acrescentando que quando isso acontece alguma coisa está errada. E está, de facto. Ou de um empreendedor que subiu a pulso (como eu aprecio) poder acumular uma fortuna que lhe permita, na realidade, comprar esse país. Por fim o catedrático aponta duas soluções pragmáticas (se bem que os números estejam longe da realidade que se vive por cá). Primeiro, nenhuma pessoa singular devia ser autorizada a levar para casa anualmente mais de 100 vezes o dinheiro que um trabalhador médio leva no mesmo espaço de tempo. Os números são estes: 40.000 dólares Vs 4 milhões de dólares. O rendimento que excedesse esse valor seria devolvido ao estado, revertendo para instituições de carácter social. Em segundo lugar, nenhum indivíduo devia ser autorizado a acumular um património 50 vezes superior ao rendimento anual autorizado, o que equivale a dizer que ninguém poderia transmitir aos seus herdeiros mais de 200 milhões de dólares, sendo que o excedente seguiria o caminho já apontado. Howard Gardner relembra àqueles que gritam “nem pensar” a tais limitações de riqueza pessoal, que há 50 anos atrás, apenas 50, tais propostas teriam parecido razoáveis e até generosas e acredita que seriam aceites rapidamente, com as pessoas a interrogarem-se porque não estavam já em vigor. Como ele e enquanto tecido social, acredito que nenhum indivíduo ou família deveria ter o direito de acumular riqueza sem limites. É que parte desses milhões, ou biliões poderiam ser aproveitados para, por exemplo, começar a resolver problemas e, quiçà, a salvar o mundo. Acho que voltarei aqui, com a Foreign Policy e mais alguns dos 21 problemas e respectivas soluções.

17.9.07

Foi Fidel bom para Cuba?

Há uns dias atrás tive o raro privilégio de ser a pessoa a quem foi emprestado o número zero de uma revista recentemente lançada, FP de seu nome (Foreign Policy), dedicada a assuntos de política global, economia e ideias em geral. Àparte a língua brasileira erudita com que são escritos a maior parte dos artigos, que aqui e ali soam... eu diria esquisitos (mas admito que a culpa seja dos meus ouvidos), apreciei ler alguns deles e passar os olhos noutros. Sou fã confesso desse pequeno país caribenho, dos cubanos, do carisma e da atmosfera de Havana, nem tanto do regime, que na adolescência colhia a minha simpatia, culpa do Chê e de Fidel, das suas aventuras, coragem e luta pela liberdade. Comecei por passar os olhos, na diagonal, e detive-me num artigo cujo título, uma pergunta que muitos de nós já colocámos, espicaçou a minha curiosidade, até porque o tempo do verbo ir é usado no pretérito, como que adivinhando o que um dia, que já esteve mais longe, acontecerá a Castro. Foi Fidel bom para Cuba? A resposta era dada no artigo em forma de debate entre dois respeitáveis intelectuais cubanos – Carlos Montaner e Ignacio Ramonet, com o primeiro a defender que não, que Fidel não tinha sido bom para a sua pátria e o segundo a cair em defesa do contrário. Montaner defendia a sua tese desenvolvendo quatro capítulos – O comunismo falhou em Cuba; Os cubanos estão pobres e escravizados; O fim de um triste capítulo e Cuba Livre. Ignacio, por sua vez, cai em defesa de El Comandante e do regime abordando e desenvolvendo diferentes capítulos – O futuro de Cuba está aqui; O invejável percurso de Castro; Vendo a verdade e Viva Fidel. Armei-me em juíz de uma causa que não é minha porque senti a necessidade de responder, apenas para mim, à pergunta que dava início às hostilidades, exigindo a mim próprio um sim ou não, como se não soubesse que a História é pródiga nestas coisas, e “nestas coisas”, há por vezes um talvez sim e um talvez não. Reli um dos capítulos (Cuba Livre), fixei-me em dois ou três parágrafos, peguei no martelo, mandei calar a audiência e proferi a sentença em silêncio: Não. Fidel não foi bom para Cuba. O que diziam esses parágrafos? “Julgar meio século de uma ditadura incompetente segundo as operações que faz às cataratas é um argumento fascista como o que caracterizava os apologistas de Franco: a sua ditadura foi boa porque os espanhóis conseguiram comer três vezes por dia. Argumento também utilizado pelo regime racista sul africano: o apartheid era bom porque os negros não eram tão pobres como os dos países vizinhos. A ditadura de Fidel foi boa porque emprestou médicos ao Terceiro Mundo”. A cegueira ainda não tomou conta de mim e sei reconhecer o que Fidel fez por Cuba, mas sim, conheço bem esse rol de argumentos... que nunca me sensibilizaram. E o bem que se fez não justifica o mal que se faz.

Que coisa mais fora de moda...

Amante de raguebi e ex-praticante, mas desconhecedor, confesso, de algo que li hoje num jornal, num artigo que fazia alusão ao desempenho da Selecção Nacional no Campeonato do Mundo que está a decorrer em França. Li eu, que um (quiçà o melhor) jogador de raguebi do mundo, neozelandês, claro, apesar de ser ainda jovem adiou a sua partida para paragens europeias, onde poderia jogar como profissional em equipas de tôpo francesas ou inglesas, por querer permanecer All Black por mais algum tempo. É simples: para se jogar na Selecção da Nova Zelândia, seja o melhor do mundo, ou um dos melhores do mundo, tem que se jogar no seu país. Quem joga lá fora deixa de poder ser All Black (a melhor equipa do mundo da actualidade). Irra, que mentalidade... que princípios mais esquisitos... que atitude mais fora de moda...

13.9.07

Africa (XI). A Terra é redonda.

O apelido de Joseph Thomson, o primeiro europeu a empreender a travessia de território queniano entre Mombassa, na costa oriental e banhada pelo Índico, e o Lago Vitória, deu o nome a umas quedas de água – Thomson Falls, que originalmente se chamavam Nyahururu Falls (e ainda se chamam). As Thomson Falls, assim me foram apresentadas pelo meu guia (esse mesmo, o Youstous) situam-se em pleno equador. Se olharmos para o mapa, meu companheiro inseparável nessa viagem, essa linha imaginária que divide o planeta em duas metades, atravessa as Thomson Falls, que incluí no itinerário da viagem sem saber bem porquê, mas não me arrependi de estar ali não só pelo que os meus olhos viam, mas também porque o meu pensamento me levou a imaginar a travessia daquele explorador nos finais do século XIX. Youstous, contudo, encarregar-se-ia, nesta altura as cerimónias já tinham ficado algures perdidas na savana africana, de tornar aquele dia inesquecível e não pelas razões ou belezas naturais que nos tinham ali levado. Perguntou-me se me podia levar até perto de Nanyuki, cidade conhecida pelos viajantes por ser lá que está o famoso Mount Kenia Safari Club, no qual consta uma lista de membros assinalável (Winston Churchill, Bing Crosby, Bob Hope, Hemingway, etc). Se é para me mostrares o Clube, agradeço-te mas não estou interessado. Sabes, quando marquei a viagem podia ter incluído uma noite lá... e tenho a certeza que deve ser fantástico, com uma atmosfera impressionante. Mas estás-me a ver, a mim, aqui no mato, a ter que vestir um blaser e a não poder usar jeans na sala de jantar? Ele deu uma gargalhada contagiante e ainda a rir balbuciou que não, que não estava a ver, mas insistiu em levar-me pela estrada que chega a Nanyuki pelo sul e atravessa o equador. Esclarecidas as coisas, porque não? vamos lá embora para não chegarmos, já noite, às tendas onde iríamos pernoitar. E fizemo-nos à estrada na Bedford matreira que nesse dia bufava que nem uma louca. Lembro-me de estar um calor insuportável, abafado. Já próximos de Nanyuki, a beira da estrada apinhada de gente, uns a vender, outros a comprar, motoretas carregadas, crianças a brincar, Youstous afastou-se do burburinho e parou. Enquanto se dirigia à bagageira da van ia dizendo, aqui passa o equador, aqui mesmo. Aí mesmo onde estão os seus pés, acrescentou quando me viu apeado, ele já de funil numa mão e garrafa de água na outra. Onde é o hemisfério norte? atira-me com um sorriso desafiador, eu ainda baralhado com tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo. Arrisquei e acertei. Venha comigo, vamos dar 50 passos daqui (da linha imaginária do equador) em direcção ao hemisfério norte. Fui seguindo as instruções: segurei o funil direito enquanto ele deitava água, olhei para a parte de dentro do funil e vi a água a sair. Para que lado roda a água no interior do funil? deixa lá ver... para a esquerda. porquê Youstous? Não houve resposta, apenas mais uma instrução. Agora caminhemos ao contrário, os mesmos 50 passos. Vamos fazer o mesmo mas no hemisfério sul... e não é que a água do funil, ao sair roda para a direita? Pasmei, ele riu-se, voltámos à Bedford e ao arrancar diz-me sem tirar os olhos da estrada e entre uma gargalhada bem disposta, a terra é mesmo redonda Mr. Mike. Eu sei Youstous, eu sei, já Plínio aceitava a ideia, Ptolomeu desconfiava e Pitágotas achava que sim. Mas tu mostraste-me à tua maneira, sem ter que ler num livro, ver num documentário ou numa fotografia do espaço tirada por uma qualquer nave espacial. Não me arrependi de ter ido para ali, de estar ali, nos confins de uma África onde não estão as minhas raízes.

Ele há jogos e jogos mas fair play devia haver sempre.

Ele há jogos, e quem gosta de futebol, percebe minimamente da coisa e costuma ir ao estádio ver jogos, aí temos uma noção diferente do que se passa em campo face ao que vemos na televisão, entenderá o que que eu quero dizer. Dizia eu, ele há jogos em que a equipa que está a ganhar, mesmo sem dominar o jogo, mas controlando-o, nos transmite uma sensação de segurança absoluta, deixando-nos tranquilos mesmo quando são marcados 2 ou 3 cantos seguidos perto da sua baliza. São daqueles jogos (e daquelas equipas) que, mesmo a um quarto de hora do fim já nos deixam a pairar o sentimento calado este já cá canta, os 3 postos já não fogem. Há outros jogos (e outras equipas) em que, mesmo estando a ganhar por 2-0 em casa a 5 minutos do fim e com um domínio aparente, nos deixam num constante sobressalto, sem conseguirmos afastar um pensamento pessimista. Se eles (os adversários) marcam agora ainda acabamos por perder nos descontos. Eu, sportinguista já estou habituado, sei bem do que falo, o que faz com que eu, português, não tenha que me habituar. Infelizmente. Independentemente de uns ou outros jogos (umas e outras equipas), há uma coisa que aprecio (proporcionalmente ao tempo que vai passando por mim), seja porque fui educado assim, seja pelo facto de ter sido desportista desde que me lembro: fair play. E há outra coisa que, fruto do pragmatismo cultivado ao longo do tempo desportivo e da vida, aprendi a assumir mesmo quando as circunstâncias o tornam penoso: não se ganha bem nem mal, ganha-se. O mesmo aplica-se nas derrotas e nos empates.

Aproveito para esclarecer que qualquer semelhança ou aproximação do que aqui está escrito com o jogo da Selecção Portuguesa de ontem é uma mera coincidência.

11.9.07

África (X). Às vezes o mar não estava pelos ajustes... havia que enfrentá-lo, sem medos.

Meninos armados em homens, que dos fracos não reza a história. Os rapazes mais cobardolas (conscientes) ficavam-se pelo olhar em terra firme, os mais temerários (inconscientes) avançavam, com um sorriso desafiador e postura de herói, para o mar revolto com as ondas a bater nas rochas ponteagudas do esporão. E não era água mole em pedra dura, era água rija com os salpicos severos e a espuma agreste a voar a muitos metros de distância. Coisa de machos (inconscientes), calções de banho vestidos com cinturão de chumbo à cintura, troncos nus, máscaras de mergulho nas caras (quem precisava de barbatanas e respirador?), um arpão já gasto pela ferrugem numa mão e a outra livre com uma luva calçada, de preferência com marcas de pescarias sub-marinas... quem conseguisse provar que eram mordeduras de moreias avessas a visitas inesperadas aos seus covis, era o mais respeitado. Três ou quatro corajosos (sempre que as palavras corajosos, temerários, intrépidos, etc, aparecerem aqui escritas, deve ler-se inconscientes) aventuravam-se a entrar no mar e os outros, os mais sensatos e os mais novos ficavam no esporão com as redes de recolha da pesca. A aventura começava logo na entrada para o mar, que não dava para mergulhar, sabia-se lá que rochas ele escondia e não fossem despedaçar-se contra uma delas... intrépidos mas não tanto, por isso havia que entrar na água com calma, o que fazia com que incorressem noutros perigos, como por exemplo, serem atirados de volta ao esporão por uma onda que, adivinhando os intentos da rapaziada, revelava uma amizade ancestral pelos pobres lagostins. Como é que é? vamos lá para dentro ou hoje ficas cá fora com a rede na mão? Este era o sinal, a trombeta que soava nos ouvidos e para a qual havia apenas uma resposta: vamos e é já! Duas horas passadas, que as águas tropicais são quentes mas o corpo pede a sua temperatura original depois de algum tempo no mar, e era vê-los, orgulhosos a sair da praia, atravessando a avenida de regresso a casa, já o sol ia alto, com os lagostins pescados (eles diziam caçados... coisa de meninos armados em homens) e que iam oferecendo à vizinhança até chegarem a casa, não fossem os pais saber que eles se tinham aventurado pelo mar dentro nesses dias em que ele não estava pelos ajustes... mar encapelado como se diz por cá.

Boa sorte.

A voz desta menina (deve ter menos de 30 anos) foi-me dada a conhecer em S. Paulo apesar de a saber nascida no Mato Grosso. Influências musicais? as melhores, desde Tom Jobin a Luiz Gonzaga, passando por Milton Nascimento. O melhor tributo de início de carreira? foi dado pela diva Maria Bethânia que cantou uma música composta por Vanessa da Mata quando tinha 20 anos. Estranhei a mistura com Ben Harper, de quem não acho muita piada... estranhei ao princípio, gostei logo ao princípio, na Oxigénio.
Boa sorte!

África (IX). Nunca fiz todo-o-terreno... ou será que fiz?

O velho Willys comprado sem segunda mão... segunda? oitava ou nona... ainda ostentava a placa metálica original (US Army 1943) no tablier. Era uma verdadeira relíquia e para ele, ainda menino às portas da adolescência, era um tesouro. O velho jipe não tinha portas, apenas umas correntes envoltas em mangueiras cortadas que se prendiam por um gancho, o limpa pára-brisas nem sempre funcionava, por isso havia sempre uma batata (depois explico para quê) numa prateleira a que chamávamos porta-luvas... porta-batatas é o que era. Não tinha indicador de combustível, nem de temperatura do motor, enfim, não tinha muita coisa, mas tinha muito carácter. A herança que deixo aos meus filhos é um canudo, a carta de condução e o brevet (que era baratucho no princípio dos anos 70 em Angola), habituou-se ele a ouvir do pai desde sempre... mas o jipe fica para mim, que sou o mais velho, não é pai? Foi no velho jipe que aprendeu a conduzir, tinha 12 anos. Aos sábados e domingos de manhã bem cedo entre calduços e algumas reprimendas quando a paciência do pai já se tinha esgotado... é que o Willys também não tinha travão de mão e os pontos de embraiagem eram um exercício deveras complicado nas inclinações em que o pai, naqueles momentos por ele considerado um carrasco impiedoso, lhe mandava parar. Não tem que descair nem um centímetro, vamos, recomeça... Mas pai... estás aqui para aprender, não é para passear, isso é depois, quando souberes conduzir. Quando a lição corria bem, o melhor prémio era o dito passeio, conduzindo livremente pela savana, entre as anharas perdidas no planalto, sem estradas nem picadas a ter que seguir, apenas o prazer do volante na mão, o pára-brisas tombado sobre o capot com o ar quente a bater-lhe na cara, corpo molhado pelos salpicos de riachos atravessados com bravura, sem medos, curvas apertadas para se desviar das espinheiras que os esperavam traiçoeiras, o pai ao lado a dar-lhe orientações pelos pontos cardeiais, que no mato não à esquerda nem direita, e a nuvem de pó a levantar-se atrás do velho jipe até um buraco ou um solavanco mais forte lhe dizer está na hora de voltar para casa que já estás a esticar-te, como se diz agora. Como eram divertidos e gostosos aqueles passeios de jipe no mato... aqui diz-se fazer todo-o-terreno?

10.9.07

Sentir orgulho, mesmo na derrota.

Domingo, 16:45 h, muita curiosidade e expectativa aliadas a algum frenesim. Mais 15 minutos e Portugal faria história numa modalidade estranha para a maior parte das pessoas. O mais velho, que tem progressivamente aderido ao raguebi, estava bastante animado a ponto de me ter deixado a pensar, por brevíssimos momentos, se não lhe estaria a passar o meu desapontamento actual pelo desporto rei, principalmente no que diz respeito à Selecção Nacional do Sr. Luíz Felipe (eu já acho que é mais dele que minha, mas se calhar sou só eu). Se levarmos menos de sessenta já não é mau... que exagero pai, vamos jogar com a Escócia não é com os All Blacks... pois... deixá-lo estar assim que nem sonha que há dois anos atrás levámos 90 da Itália. Nem às paredes confessei mas estava à espera de um bom jogo dos Lobos. Bom jogo leia-se, organização, espírito de equipa, boa circulação de bola nas linhas atrasadas e muita, total, exemplar, entrega ao jogo, que no raguebi, porventura mais que em qualquer outro desporto, é meia vitória. Neste caso foi meia derrota e ainda bem, porque senão os números seriam outros. Era isso que esperava porque deixar o bom nome de Portugal bem visto e orgulhar o país e os portugueses, isso era practicamente garantido com aquela Selecção e aqueles atletas. E dei comigo irritado com os jogadores portugueses, com as falhas técnicas (a inexperiência tem um preço elevado) que resultaram nos inúmeros pontapés de penalidade bem sucedidos por parte dos escoceses, esquecendo-me durante o jogo que o adversário era apenas a histórica Escócia. Bom sinal, muito bom sinal. Há muito tempo que, mesmo na derrota, não sentia tanto orgulho naquelas camisolas das quinas (ultimamente no futebol, às vezes nem com as vitórias). Bravo Selecção, grande jogo rapazes (em especial o do Vasco Uva, o melhor em campo), parabéns Tomás.

6.9.07

Africa (VIII). Algures entre Samburo e Nankuro.

Youstus era o nome dele (e espero que ainda seja, que esteja vivo para que os 6 filhos o repitam todos os dias). Um preto alto e encorpado, cidadão de um país onde não estão as minhas raízes, mas nativo de um Continente que considero igualmente meu. Ganhava a vida como guia turístico no Quénia, conduzindo, muito mal, verdade seja dita, uma van de 9 lugares. Lembro-me bem que era uma Bedford branca que me pareceu mais velha que o seu condutor, assim que cheguei a Nairobi. Velha e caprichosa já que as minhas malas se encarregou de espalhar em território Masai, quando resolveu abrir, sem que ninguém lhe dissesse para o fazer, a grande porta da bagageira. Tão indecentemente caprinhosa que por sua conta e risco dos ocupantes, decidiu separar-se de uma roda quando o velho Youstus a dirigia, como sempre mal, a uma velocidade desanconselhada, numa picada a que ele dava o nome de estrada. Estou vivo para contar o episódio porque o diabo devia estar a dormir a sesta e tive a sorte de um dos deuses a ter interrompido para ir aliviar a bexiga (estou a imaginá-lo a dizer mal dos seus pecados, ou melhor, bem das suas virtudes, porque pecados era com o outro, o que se deixou dormir). Chegámos ao lodge, lá nos confins de Mara, porque, felizmente, as rodas tinham 4 porcas e fiquei a saber que se podem fazer centenas de quilómetros com apenas 3 em cada uma delas. Youstus tinha tão mau de condutor quanto de bom conversador. Culto, educadíssimo, com um humor britânico e instruído (ah, Commonwealth, que legado). Uma manhã, bem cedo, como começavam todos os nossos dias, depois de vários quilómetros percoridos em direcção a Nankuro e já com o território Samburo a fazer parte da lembrança, atravessámos uma povoação em pleno Vale do Rift. Uma povoação que não era diferente de muitas outras por onde passáramos. Algumas casas, população sorridente e uma escola, sempre uma escola. Pedi-lhe para parar em frente à escola e ele assim fez, sem contudo conseguir esconder o seu espanto, que mais à frente seria substituído por um sorriso, as mãos no volante e os olhos na estrada. As fotografias que tirei ainda as guardo comigo. Fotografias da professora e dos seus pupilos, alguns descalços mas todos trajando um uniforme cuidado (no verso da foto escrevi batas). Estavam a ter aula de aritmética, posso afirmar a pés juntos, numa sala improvisada ao ar livre. Dei conta que havia outras salas de madeira pré-fabricada, só que estavam todas cheias. Improvisada era a sala, assim o era a ardósia, com a tabuada a ser ensinada numa caligrafia perfeita e desenhada na terra poeirenta. Com disciplina e muita alegria (que acredito ser genuína) repetiam em coro os números que a professora, de vara na mão apontada para o chão, ensinava. As mais atrevidas distraíram-se por momentos para me acenar, sorridentes, acompanhadas logo depois pela professora num acto de tolerância e cumplicidade. Ainda a velha Bedford não se tinha feito de novo à estrada, indolente e contrariada, a lenga-lenga tinha sido retomada, qual coro infantil afinado que ecoou na minha cabeça durante vários quilómetros, o tempo suficiente para pensar: deve estar muito orgulhoso Mr. Jomo Keniatta.

5.9.07

A obra feita já não tem assim tanta importância. É pena.

Não vou à missa, sou católico e baptizado porque sim e a minha opinião sobre a religião, sobre o Vaticano, etc, calculo que seja contrária à de muita gente (cada vez menos gente, presumo). Posto isto, o que me leva a escrever sobre uma senhora nascida albanesa, de seu nome Agnes, é o título da capa da Revista Visão da semana passada. “A vida secreta de Madre Teresa de Calcutá”, seguindo-se um pequeno texto na mesma capa, para aguçar ainda mais o apetite dos leitores e que faz referência às cartas escritas aos seus confessores sobre as dúvidas da fé (dela). Comprei a revista (um hábito às quintas-feiras) já contrariado sem saber explicar bem porquê, ou melhor, adivinhando um artigo de fundo focado no tema e omitindo ou esquecendo a obra. Os meus receios tinham fundamento. Fala-se de psicólogos, dissonâncias cognitivas, torneiras espirituais, desígnios divinos, perturbações interiores, etc. O artigo de fundo da Time que a Visão nos dá a ler omite a obra. Mas a revista portuguesa perdeu uma boa oportunidade de fazê-lo. Sei que houve sérios críticos à sua personalidade e à sua obra mas ela está aí, feita pela Prémio Nobel da Paz. “Não usemos bombas nem armas para conquistar o mundo. Usemos o amor e a compaixão. A paz começa com um sorriso” pode soar a uma frase batida mas nos idos tempos da Guerra Fria foi um pensamento expresso que causava algum desconforto, quiçà ao próprio Vaticano. E mesmo que fosse batido? alguém se atreve a discordar dele? Foi pena. Perdeu-se a oportunidade, os portugueses ficaram a saber a história pela metade, porventura a metade que menos interessa, mas é a metade que vende mais revistas.

4.9.07

África (VII). Pescar sem cana nem anzol.

Olha pela janela, ainda é noite mas o dia não tarda está aí a despontar. Não sabe porquê, nem lhe interessa, mas em África, a das raízes inconscientes dele, o amanhecer acontece num zás, num ainda é de noite não era? Os preparativos levam menos tempo que vestir-se, lavar os dentes e a cara. Vestir-se... pois sim... vestir o calção de banho que à pesca vai-se tronco nu e descalço. Mata-bicho tomado, frasco grande de vidro cheio de pão seco na mão e ala que se faz tarde. Então ele não ia pescar? Onde raio está a cana de pesca, azóis, chumbadas e isco? Se calhar trazem os amigos... Não, não trazem e vão todos pescar. Vão pescar taínhas, esse peixe a que se habituara a ouvir o pai chamar de imundo e que, na melhor das hipóteses serve para isco. É a esta hora da manhã, quando o sol ainda não começou a sua subida vertiginosa que ele as pesca, com o tal frasco e pão dentro, que depois, quando já faz muito calor, caça-as com uma pressão de ar, mira bem calibrada, pontaria afinada e o tiro certeiro quando elas estão de dorso de fora a apanhar banhos de sol. Ele já com água por baixo da cintura na companhia do ladrar de alguns cães que, de passagem, resolvem implicar com o chilrear das gaivotas, frasco pousado no fundo do mar esperando que as tresloucadas das taínhas entrem sem conseguirem encontrar o caminho da saída, peixes tontos. É até deixar de ver o frasco. Depois é simples, basta tapar o bucal e despejar o conteúdo do frasco na areia, à beira mar. As mais pequenas voltavam para as águas calmas da baía. Menos de duas horas depois, já com o sol implacável a fustigar-lhe as costas e os ombros, o regresso a casa com isco suficiente para meia dúzia de pescarias a sério, essas com cana de pesca. Infância feliz a dele, à beira das águas plácidas da baía ou do mar revolto que ficava do outro lado da avenida. Na África das suas raízes.

África (VI). Gosto da música destes dois

Amadou Bagayoko e Mariam Doumbia são dois músicos africanos nascidos em Bamako, capital do Mali, um país africano conhecido pela maior parte das pessoas através da notoriedade que o Rali Paris-Dakar lhe conferiu. Um Mali bem mais a norte da África onde estão as minhas raízes. Mas o que fazer se é nesse imenso continente de fronteiras concebidas pelos colonizadores que sinto estarem as minhas raízes? Gosto de Amadou e Mariam, destes dois músicos cegos que cantam as venturas e desventuras do seu povo e nos mostram o mar, as cores vivas e os sorrisos rasgados de gente sofrida mas sempre alegre e esperançada, gente que canta para que o sol se levante e que se despede dele quando o dia dá lugar à noite... Gosto da mistura de instrumentos simples que já nos tínhamos esquecido que existem como os brimbaus e os xilofones...

http://www.youtube.com/watch?v=ShzhsPD3K0E&mode=related&search=

3.9.07

De regresso a casa no dia 9 de Julho de 2009

Pai... Sim... Deves-me 4 gelados. Essa agora... porquê? Porque antes deste gelado o mano comeu 4. E depois? Depois, deves-me 4 gelados.
Não estou a perceber a lógica. Estás, mas não queres mostrar que estás a perceber. A sério. Paaaiii, sabes bem o quero dizer. Percebo a tua lógica, que não tem muita lógica. Deves-me 4 gelados e pronto! Vamos com calma menina, agora não me lembro e também não interessa, mas de certeza que quando o teu irmão comeu os outros gelados, tu ficaste a ganhar alguma coisa. Pode até ser, mas não eram gelados. Mas ganhaste. Já te disse que sim e quando te lembrares o que eu ganhei dizes-me e ficas a dever isso ao mano. Quer dizer, eu é que tenho que me lembrar e para ficar a dever a alguém. Alguém não, ao teu filho. Sim, ao meu filho, mas fico a perder na mesma. Quando se deve a um filho nunca se fica a perder. Quem te ensinou isso? A avó. Qual avó? A avó Maria. A avó Maria só te ensina coisas bonitas. Eu sei. Isso quer dizer que concordas, certo? Concordo sim. Então repete a seguir a mim: devo 4 gelados à minha filha.
...
Então? não ouviste? repete lá. Repito o quê? Paaaiiii. Não ouvi, estou a conduzir e tenho que ir concentrado no trânsito. A mãe ouve-me sempre, mesmo quando está a conduzir. Porque não vai tão concentrada como eu.
Estás a querer dizer que ela conduz pior que tu? Não, não disse isso.
Mas era o que querias dizer, vou-lhe contar. E o que é que ganhas com isso?
Ela fica a achar que sou uma aliada dela. Mas assim perdes o teu aliado que te compra gelados às escondidas da mãe. Os pais são aliados dos filhos para sempre. Os pais só podem ser aliados se os filhos derem provas que merecem. Esta tirada soou-lhe ineficiente. Mesmo que concorde contigo, mas olha que vou perguntar à mãe e a avó Maria se é mesmo assim, achas que eu não mereço que sejas meu aliado? Mereces, claro que sim, tens sido uma linda menina. Então repete lá comigo. Repito o quê? Devo 4 gelados à minha filha. Devo 4 gelados à minha filha. Vês? Não foi difícil. Ela ainda se dava ao luxo de ser complacente na vitória. Pois não, mas não concordo com isso. Agora é tarde para chorar sobre leite derramado. Ainda hesitou mas depois de breves segundos de silêncio não resistiu e avançou com a pergunta para a qual estava quase certo sobre qual seria a resposta. E quem te ensinou isso? A avó Maria. Disseram os dois em uníssono, sendo interrompidos, pela primeira vez, pelo mais novo que se mantinha em silêncio desde que a viagem tinha começado. A avó Maria é minha amiga. Pois é filhote. Mas é mais minha amiga que tua. Agora ela tinha apontado as suas energias, quais baterias anti-aéreas certeiras prontas para devastar outros céus. Não, não é! É! Não é! É! Não é! Meninos, parem com isso, é amiga dos dois. Ele achou que o tom de voz não tinha soado com a firmeza que se impunha e os seus temores revelaram-se acertados já que a discussão continuou. Estavam quase a chegar a casa.
Mesmo assim resolveu intervir, jurando a si próprio que seria a última vez. Porque é que não perguntam a avó Maria de quem é que ela gosta mais ou é mais amiga? O mais novo remeteu-se ao silêncio mas ela não desarmou. Para quê? eu já sei a resposta, ela vai dizer que gosta dos dois da mesma maneira. E sabes porquê? Porque as avós não podem gostar mais de um neto que de outro. Ou será porque ela gosta mesmo dos dois, da mesma maneira? e sente que é amiga dos dois de igual forma. Isso nunca se saberá, só ela é que sabe e nunca irá dizer a ninguém. Estás a querer dizer-me que a avó Maria não diz a verdade? Não, não, eu não disse isso. Agora ele sentia-se outra vez na mó de cima perante o vacilo da convencida e surpreendida filha, que revelava um embaraço impossível de esconder. A avó Maria diz sempre a verdade. O mais novo voltou para ajudar à festa. Cala-te! o que é que tu percebes disso? Percebo que a avó Maria diz sempre a verdade e vou-lhe contar que tu achas que não. Isso é mentira! Eu não disse nada disso e ela nunca acreditaria nisso, e se lhe disseres vais-te arrepender. O tom de voz revelava uma menina desesperada e a dar sinais de estar prestes a perder a clareza de raciocínio até então demostrada. Filha, estás a ir longe de mais. Vocês estão a irritar-me. Não, nós estamos a conversar. Tu é que estás irritada porque gostas de ter sempre razão e agora não tens. O mais novo não desarmava e não estava a ajudar. A tua irmã não está irritada, só está um bocado empolgada e não vale a pena desafiá-la mais. Ele achou que havia que deitar água na fervura. Estou irritada sim! Era ele a deitar água na fervura e a filha a levantar o lume. Pronto, está bem, estás irritada, mas não vale a pena continuares assim. Vês pai? Ela está mesmo irritada. Era ela a levantar o lume e agora o irmão a acender outro bico do fogão. Chega! Sabiam que estavam a esticar a corda, pelo menos ela tinha a perfeita noção disso e o desejo de evitarem a tempestade imperou. Ele logo se arrependeu de ter levantado a voz. Os pais levantam a voz para sentirem que controlam uma situação que, na realidade, já fugiu ao seu controlo. Teria sido o caso? Apenas achara que tinha chegado o momento de exercer a sua autoridade de pai. A palavra autoridade não lhe soou simpática nos seus pensamentos. Também não é para ser, autoridade nunca se faz acompanhar pela simpatia. Ela tinha amuado, cruzado os braços e, de cara fechada, olhava para nada e ninguém através do vidro da janela, com o olhar perdido no vazio. O irmão, de queixo levantado e sorriso desafiador, olhava pelo canto do olho castanho escuro para irmã, sentindo que hoje tinha ganho uma batalha. Uff, o portão da garagem estava, finalmente, a abrir-se. Há 2 anos atrás era bem mais fácil, quando o silêncio do mais novo era “comprado” com um chupa ou uma mão (cheia) de sugos...

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