30.6.08

O hábito faz o monge. Que monge?

Desde cedo que as nossas vidas e os nossos quotidianos são feitos de hábitos que vão dando origem a rotinas. Porque a vida é mesmo assim, e mais vale convivermos bem com os hábitos que combatê-los de uma forma geral. Há prós e contras, mas a maneira usual de sermos ou fazermos e a forma acostumada de encararmos o dia-a-dia facilita a organização diária, sem a qual a nossas vidas seriam um desgoverno abeirando-se do caos. Depois há o hábito que faz o monge e com isso a rotina. Aquele caminho já trilhado e sabido, que tem tanto de confortável como de entediante, e que nos leva invariavelmente a uma prática constante, seguindo normas estabelecidas por outros ou por nós próprios. Há hábitos bons e hábitos maus, apesar da carga subjectiva que preside a esta afirmação. Este fim-de-semana, um dos títulos que tive a oportunidade de ler ao longe, no jornal Expresso que estava nas mãos de outra pessoa, era “porque nunca ganhamos?”, referindo-se, julgo eu pelas imagens, ao Campeonato Europeu de Futebol. Porque não adquirimos esse bom hábito, o de ganhar, pensei de imediato. Há outros hábitos bons por tudo aquilo que contribuem para o nosso bem. Ou seja, o hábito que faz o monge, pode ser um bom hábito e exercitá-lo deveria ser uma rotina, uma boa rotina. O hábito de ler, o de conversar, o hábito de dar afecto, o de pensar nos outros, o hábito de educar, o de fazer sexo, o hábito de nos alimentarmos bem, ou de levarmos uma vida saudável, ou de amar, e por aí adiante. Nem sempre estas práticas são desejadas ou nem sempre, e muitas justificações haverá, temos vontade de as colocarmos como rotinas nas nossas vidas. E quem não tem ou não pratica, não sente a falta e habitua-se a viver sem isso. A fronteira é muito ténue entre o que parecemos controlar e o que perdemos. O que acontece a quem perde o hábito de ler? ou a quem perde o hábito de conversar? Como se torna a vida de quem perde o hábito de dar afecto? ou de pensar nos outros? Que consequências advéem para quem perde o hábito de educar? ou de fazer sexo, ou amor?, chamem-lhe o que quiserem. Como será a saúde de quem perde o hábito de se alimentar bem ou cuidar dela? Depois há os maus hábitos, mas com o mal dos outros, ou os hábitos maus dos outros, passamos nós bem, por isso esses monges não são para aqui chamados. É bom de ver que se os hábitos nos levam às rotinas, também as há boas e más. E a tal fronteira é, também, muito ténue. O meu pai sempre me disse que não podemos estar à espera que alguma coisa mude se a fizermos da mesma maneira como sempre a fizemos. Algo a opor? Não me parece. Contudo desconfio sempre quando me falam em quebrar rotinas ou na necessidade de as quebrar. Então quando se trata de casais, a minha desconfiança toma proporções que fazem adivinhar a desgraça alheia. Nem sempre pensei assim e, durante muitos anos, vivi ansiando por quebrar rotinas. Hoje adopto outro comportamento, orientado por uma atitude diferente e que requereu disciplina e exercício. Ao invés de as quebrar, prefiro saboreá-las. A essas mesmo, às rotinas que tantas vezes ansiamos quebrar em vez de as saborar.

28.6.08

Não nos deixemos ludibriar pela opinião.

Considera que não são as acções dos outros que nos perturbam, pois que pertencem ao domínio das suas vontades, mas a opinião que sobre ela formamos. Suprime-a, pois. Trata de anular o juízo que te deixa indignado e a tua cólera se desvanecerá. Como suprimi-la? Meditando em que não há nisso nada de vergonhoso para ti, porquanto se houvesse outra coisa, além do mal moral, que fosse vergonhosa, tu também cometerias necessariamente muitas faltas. Tu te tornarias um bandido, de qualquer maneira.

Acho que tens razão, Marco Aurélio.

Fernando Pessoa não era sábio. Ou seria?

Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e carácter fixo e conhecido - tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um facto, de a materializar e tornar exterior. Viver num doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio é o único modo de vida que a um sábio convém e aquece.

Fernando Pessoa

26.6.08

Uma amizade antiga.

Os afazeres profissionais levaram-me ao Porto, a Invicta Cidade que sempre me recebeu de uma forma radiosa e sorridente. Conheço as quatro estações dessa cidade, o frio, a chuva, o vento, a neblina, a humidade desagradável, os dias de Primavera que me deixam de mau humor, os dias de Outono que me alegram. O Porto recebeu-me novamente com um sorriso, cálido, aberto, genuíno, próprio de uma amizade antiga que soubemos cultivar numa cumplicidade só nossa. A Ponte da Arrábida abre-me os braços num abraço fraterno e eu atravesso-a com um sorriso, deixando Gaia para trás e a caminho de Campo Alegre. Dificilmente consigo explicar este fascínio e, sobretudo, esta sensação de bem estar que o Porto desperta em mim. É porque não vives cá o ano todo, dizem-me alguns amigos. Pode até ser, costumo responder como o mesmo sorriso cúmplice com que atravessei a ponte para a margem norte do Douro. Considerar-me-ei um felizardo, então, por usufruir apenas do que é bom e da sensação sempre renovada de prazer que tu, oh Invicta, me transmites sem nada em troca pedires.

23.6.08

Águia recebe o primeiro leão?

É caso para qualquer adepto do Sporting tremer, antes de se irritar e depois vociferar e bradar aos céus da Alvaláxia. A notícia não é só má per si, como faz adivinhar o pior. O primeiro leão? Quer dizer que se seguem mais? E atendendo a que a Águia tem um poder financeiro superior (não confundir com outros poderes, como por exemplo o concretizador ou o defensivo), os leões que se seguem deverão ser os melhores. Não! Isto não pode estar a acontecer! Acresce o facto de ter lido outra notícia que nos dá conta do Sporting ter ficado perto do leão. Há que ler melhor a notícia. Leio com mais atenção e, para meu alívio, a notícia retracta um facto. A Águia, ou melhor, o Benfica recebeu o primeiro leão, mas correspondente ao prémio que é atribuído no Festival de Publicidade de Cannes. Descansei e, acreditem, até fiquei feliz. Não por ter sido a Águia a ganhar, mas porque foram criativos portugueses a vencê-lo. E, feitas as contas, não foi apenas um, mas três leões, um pecúlio não desprezível para a publicidade portuguesa. Neste caso não interessa se foram agências concorrentes as premiadas, que estes momentos não aconselham bairrismo e provincianismo. Basta olharmos para o exemplo do Brasil que, independentemente do mérito pessoal de quem era premiado, a publicidade brasileira sempre soube capitalizar o sucesso individual em prol de uma indústria e de uma classe de criativos. Leões destes, venham de onde vierem, ou ganhem-nos sem dó nem piedade, que é como quem diz, com a criatividade nacional. Mas os nossos leões, os do Sporting, deixem-nos sossegados, ou se for para desassossegá-los, que sejam os de fora a fazê-lo e enchendo os cofres de Alvaláxia.

22.6.08

Maestro, matemático ou geólogo?!?

A confiar numa certa teoria da reencarnação eu teria sido um maori.

No sé si le parecerá bien o no, pero usted era males en su última encarnación terrena. usted nació en algún lugar del territorio que hoy es Oceanía en torno al año 875. Su profesión era maestro, matemático o geólogo.

Un breve perfil psicológico de su vida pasada: una de esas personas que están siempre con cosas nuevas. Siempre le gustaron los cambios, sobre todo en arte, música y cocina.

La lección que su vida pasada le ha dado para la encarnación actual: su lección es aprender la discreción y la moderación para entonces enseñar a los demás a hacer lo mismo. Su vida será más feliz si ayuda a quienes carecen de razón.


O que me deixa intrigado nesta minha reencarnação, é o facto de, tanto quanto sei, esse território que hoje é a Oceania, por volta do ano 875 ser apenas habitado por aborígenes na sua maioria de raça maori. Maestro, matemático ou geólogo? Sem contudo poder duvidar que existiam essas profissões, à luz da civilização ocidental em que fui educado, parece-me um nada estranho. Mas para quem fala em emigrar para a Austrália, não deixa de ser um prenúncio.

Viver sem improvisar? Ou viver improvisando?

Julgo ser consensual os portugueses serem considerados por eles próprios, e não só, mestres no improviso ou, indo mais longe, mestres do improviso. A minha vivência no Brasil, mesmo considerando ter sido numa das cidades menos brasileiras do país irmão, fez-me ponderar seriamente, adicionar a esta característica em que os lusos são mestres, também os nativos de Terras de Vera Cruz. Viver sem improvisar parece-me de todo irreal, principalmente quando de portugueses e brasileiros se trata, não conseguindo conceber ou imaginar que haja povos que vivam sem que à sua vida juntem uma dose de improviso. Contudo, a fronteira entre as virtudes e os defeitos desta característica ou conceito, é clara, ampla e notória, e foi bem definida por Francis Ford Coppola quando dirigia, sob um apocalipse, um filme que se tornou épico e de nome muito parecido. Consta que Coppola, à beira de um ataque de nervos e passando por momentos precários, mas mantendo um equilíbrio inimaginável, perguntava aos actores antes de entrarem em cena o que iam dizer ou fazer. A quem respondia a contento do notável realizador, e de acordo com o guião, Coppola dizia simplesmente “muito bem, agora podes improvisar”. Este pequeno exemplo, onde nos é dado a assistir a valorização do método e do estudo e a consagração da competência e do profissionalismo, é cristalino e ilucidativo. Nós somos bons, ou mesmo os melhores a improvisar, oiço amiúde vozes orgulhosas a afirmar. Somos tão bons a improvisar que até inventámos uma palavra a propósito. Desenrascar. E habituámo-nos a viver improvisando, ou à nossa não boa mas má maneira, não sabemos viver sem esta paixão lusitana que é o desenrascar.

21.6.08

A minha caça.

Um dos melhores textos sobre caça li-o no Nocturno e escrito por uma senhora que não é adepta, por não conceber o sofrimento alheio, o que é compreensível e merece o respeito de todos, mesmo de quem gosta de caça. Porque a caça é um momento de convívio em contacto com a natureza, um momento, ou momentos, em que temos o privilégio de desfrutar de prazeres simples na companhia de amigos, sejam eles caçadores ou não. O tema não é consensual e muito menos politicamente correcto, bem sei. No meu caso chega até a ser paradoxal porque, por exemplo, detesto touradas. Desde muito cedo, e para o caso considerarei que os 11 anos são uma tenra idade, que a caça faz parte da minha vida, em longínquas paragens angolanas. Quando adulto passei a compreendê-la no contexto expresso no texto que referi. Antes, e continua a sê-lo, a caça era um ritual, com uma confessável dose de individualismo. Na tal tenra idade, vivi a caça como um pagem vive os preparativos do nobre que serve com devoção. Preparando, meticulosamente, as vestes do meu pai, os acessórios, os apetrechos, as armas, verificando os mais pequenos detalhes e garantindo, ao pormenor, a distribuição dos cartuchos na cartucheira, como ele desejava. No regresso o ritual mantinha-se, com a limpeza das espingardas, onde a escolha dos escovilhões de arame e macios se alternavam de acordo com os resíduos de pólvora no interior dos canos, até estarem imaculados e com as estrias visíveis. Aos doze anos causei o primeiro sofrimento alheio numa perdiz incauta que, levantada pelo nosso cão, se fez ao vôo contra o vento. Com um disparo certeiro, apenas um. Senti-me um homem, confesso, apesar do meu ombro de menino se encarregar de me mostrar e fazer sentir que tudo tem um preço. Nas minhas memórias de caça entro eu, o meu pai e principalmente o nosso cão. E o instinto predador. Não há como negar. Mas nunca vivi a caça pelo número de presas que trazíamos, como se de troféus se tratassem. Deixei de atirar a coelhos desde o dia em que a minha mais velha, ainda pequenita, ficou lavada em lágrimas porque pensou que eu lhe havia trazido um animal de estimação e depois verificou que o que estava pendurado no cinturão jazia sem vida. Desde esse dia apenas as perdizes deveriam temer a minha pontaria ou zombar da falta dela. E que eu me lembre, todas elas serviram de refeição, numa caçarola e acompanhadas de puré de batata, que a minha mãe confeccionava magistralmente. Nunca pratiquei caça grossa. Porque o meu pai nunca quis que o filho praticasse ou mesmo assistisse. Para essa caça precisas de crescer, dizia-me ele quando me via cabisbaixo ao vê-lo partir para as jornadas de caça ao búfalo, golungo, javali ou ongire. E sei que mo dizia, não apenas pelo perigo, mas para obviar que vivesse a crueldade da caça grossa tão cedo. Como quando deixei Angola tinha quinze anos, da caça grossa fica apenas esta memória. Mas para mim, caça não é tanto o convívio e sim todo o ritual, principalmente no que diz respeito ao cão. O frenesim do animal. O farejar. O sentir e o escutar. O parar. A cabeça e a pata levantada. O levantar a presa e esperar que o tiro tenha sucesso. O partir para a busca e o trazê-la orgulhoso ao seu dono, abocanhada sem lhe inflingir a mais pequena beliscadura. O passeio em nossa volta com a perdiz na boca, até deixar que a recolhamos. Há mais de dois anos que não caço. Desde que o meu companheiro de caça partiu. Sei que um dia voltarei a fazê-lo, entretanto satisfaço-me com tiro aos pratos. Faz-me falta ouvir o barulho dos tiros e sentir o cheiro da pólvora na roupa. Creio ser coisa de caçador e não me preocupo em explicá-la ou em ser compreendido. E isto da caça, está visto que nada tem de hereditário pelos exemplos que tenho cá em casa, e não faço o mínimo esforço em combater ou reeducar. Este gosto pela caça, seja ela terrestre ou sub-aquática, é uma coisa minha e que morre comigo.

E porque o Verão chegou.

Lembrei-me, inspirado numa porta onde o vento que passa é sempre uma brisa agradável, de uma versão, quiçá a mais inesperada e porventura uma das mais belas, mesmo considerando todas as outras cantoras sublimes e portentosas que emprestaram a sua voz a Summertime da folk ópera Porgy and Bess de George Gershwin. Lembrei-me de uma jovem e promissora soprano americana chamada Nicole Cabell e do seu soberbo e delicioso Summertime, acompanhada pela Orquestra Filarmónica de Londres. Se não for o melhor Summertime que já ouvi, e foram tantos e cantados por tão fantásticas vozes, é sem dúvida um dos melhores.

(Necessário clicar na música, depois de estar no site da Nicole, para se ouvir um trecho. O suficiente para querer ir a correr comprar o disco. Para quem gosta de ópera, claro).

19.6.08

Emigrar. Ainda não é desta... por enquanto.


Logo à partida agradou-me saber a origem do nome em latim. Australis, que significa “do sul” e que as lendas mencionam como terra australis incognita. Terra Desconhecida do Sul também me agradou, principalmente pelo desconhecido, e por saber que foi desconsiderada pelos cartógrafos durante anos a fio. O facto de saber que foi uma colónia britânica é igualmente reconfortante. E há qualquer coisa que me atrai, e que não sei explicar, por saber que foi um terra colonizada por proscritos, pelos condenados que cumpriram o objectivo de esvaziar os presídios do Reino Unido, recordando-me uma dúvida que sempre pairou em mim sobre a crença, ou falta dela, de Dostoievski nos homens, tão bem retratada em Humilhados e Ofendidos. Santos não deviam ser, mas humilhados e ofendidos chegaram ao continente mais novo do mundo, transformando-o num dos países mais apetecidos, ou não seria cerca de 23% da sua população constituída por imigrantes. E contrariando a tendência do velho mundo, essa população, pelo que pude indagar, é maioritariamente jovem. Isto está a compor-se! Depois só ali há marsupiais, ornitorrincos e Monstros da Tasmânia, o que lhe confere um carácter único e misterioso. As cidades são modernas, num território onde a natureza se excede e se impõe. Uma terra que parece não ter fim e, quando o descobrimos, esse fim é o mar. Isso é bom. A economia é das mais avançadas, figurando no 17º lugar do ranking mundial. Caramba, tudo isto me parece perfeito. Tenho dificuldade em encontar-lhe defeitos. Alguém me dirá que o mar está infestado de tubarões. Bah! os animaizinhos precisam de viver, certo? Se calhar os australianos não gostam de frangos. Vou ter que pesquisar mas confesso, antecipadamente, os meus receios. É que era a virar frangos que contava especializar-me, com o propósito de enriquecer. Deve ser esse o defeito que vou encontrar. Está visto que ainda não é desta que vou emigrar... por enquanto.

16.6.08

Avenida Morumbi, São Paulo, Brasil.

A Casa da Fazenda foi construída no princípio do século XIX e durante anos foi a sede da primeira fazenda de chá do Brasil. Hoje, para além de ser a sede da Academia Brasileira de Arte, Cultura e História, é um bom e agradável restaurante. A Casa da Fazenda é um local frequentado por famílias ao fim-de-semana, por homens de negócios ao almoço, durante a semana, e por senhoras tradicionais que não dispensam o seu chá da tarde num ambiente aprazível. É uma típica casa de fazenda, de traço colonial, circundada por uma generosa varanda coberta que se abre para um imenso jardim. Ali, no bairro do Morumbi, rodeada de vegetação e fazendo-nos chegar aos ouvidos o chilrear da passarada, no meio da azáfama paulistana, temos a sensação que saímos de súbito da metrópole e entregamo-nos às delícias da cozinha brasileira, numa indolência saudável e desejada. Não se vai à Casa da Fazenda para almoçar, fica-se lá uma grande parte da tarde, o tempo suficiente para a tensão abandonar o corpo e o espírito voltar a sorrir. Calma é a palavra que deve ser pronunciada quando se fala desta casa de uma antiga fazenda de chá.

15.6.08

Uma lição de bem estar com a vida.

Quem comigo lida de perto sabe que gosto de desportos motorizados, gosto de corridas de carros, de motos e de ralis, quer se tratem de pequenos troféus, quer sejam corridas ao mais alto nível, especialmente estas, como por exemplo a Fórmula 1 ou o Moto GP. E sempre que posso, gosto de as ver ao vivo, de ouvir o barulho ensurdecedor dos motores em alta rotação, o cheiro da borracha queimada, da gasolina, as ultrapassagens feitas no limite e com mestria ou a tensão da velocidade. Desde a minha adolescência que acompanho o desporto motorizado e as carreiras dos seus principais protagonistas. Hoje, em casa e no silêncio, e porque não admitir, na paz? que a ausência dos filhos me proporcionou, acompanhei duas provas do WTCC, com carros aparentemente, só aparentemente, idênticos aos que circulam nas ruas, e assisti à primeira vitória desta temporada de um piloto que se chama Alex Zanardi. Se me senti emocionado com a sua saída do carro, já no padock, e com a sua comemoração, confesso que comovido fiquei durante a conferência de imprensa que habitualmente se segue ao final das provas. O Alex Zanardi tem quarenta e um anos e tornou-se famoso nos EUA por ter sido bi-campeão na Fórmula Cart, o equivalente à nossa Fórmula 1 europeia. Há sete anos atrás, numa corrida aziaga, foi protagonista de um acidente terrível de que me lembro bem, por estar a assistir à prova pela televisão. O resultado foi nefasto para um piloto prometedor e ainda com uma carreira que se adivinhava brilhante, tendo-lhe sido amputadas as duas pernas acima do joelho. O simpático Zanardi, admirado e acarinhado por todos os que fazem parte do universo das corridas, esteve à beira da morte. O diagnóstico foi cauteloso, mas pouco depois, quando a vida deixara de estar em perigo, soube-se que com a ajuda de próteses, voltaria a andar. Com um automóvel especialmente preparado para ele, também se concluiu que poderia voltar a conduzir. Mas competir? e a um nível de exigência elevado? Creio que só mesmo ele acreditava. Hoje vi-o sair do carro, exultando pela primeira vitória desta época, apoiado em duas muletas e arrastando-se, quase tropeçando, antes dos merecidos e emocionados abraços da equipa. Seguiu-se a conferência de imprensa e, revelando um humor contagiante, começou por dizer que estava na posição que mais lhe convinha. Sentado. A sala explodiu em gargalhadas. E foi comovente ouvi-lo fazer o retrato da prova, que para ele é sempre difícil por tudo ter que fazer com as mãos. Acelerar, travar, embraiar, conduzir. Por isso é que de vez em quando vocês vêem os piscas ligados, os faróis a acenderem-se ou o limpa-pára brisas accionado invloluntariamente... é que eu por vezes atrapalho-me. E as gargalhadas voltaram a soar na sala, sob uma comoção difícil de explicar. Já no fim, um repórter comentou que ele era um exemplo de espírito de sacrifício e de vontade de viver, em jeito de pergunta e afirmação. O Zanardi sorriu, e com uma simplicidade quase atroz de tão genuína, respondeu-lhe que não, que era apenas um homem simples e feliz, com uma família fantástica, e que se sentia abençoado por fazer o que gostava na vida. Apenas me faltam as duas pernas, mas já me habituei a isso, e pelos vistos não constitui impedimento para vencer, terminou ele, sorrindo, e deixando primeiro a sala em silêncio, antes de irromperem os aplausos. Que lição, pensei eu para com os meus botões.

Porquê? Por mera intuição.

Muitos de nós, creio que todos nós, em maior ou menor grau, tomamos decisões suportadas pela intuição. Decisões por vezes tão importantes que, aparentemente, deveriam estar assentes numa exclusiva racionalidade. Kant definiu-a, e bem, em meu entender, como tratando-se de um conhecimento que tem a ver com as percepções dos sentidos, e posteriori à experiência. A intuição é um fenómeno curioso, e percepcionamo-lo como uma verdade a que normalmente não se chega através da razão ou do conhecimento analítico. No fundo acaba por ser um acto de ver, perceber ou discernir de uma forma que cremos clara e imediata. Simplificando, diria que se trata de um acto de pressentir, deixando-nos a sós com a sensação de vermos ou sentirmos algo de uma forma muito pessoal, lá no fundo da nossa individualidade, e que julgamos ser visto ou sentido de maneira diferente pela maioria das outras pessoas. Tão diferente que nos reservamos ao direito de um recolhimento e nos recusamos a dar explicações para esse sentir e esse ver, que é só nosso. Isaac Newton com apenas vinte e quatro anos intuiu sobre a inércia e a atracção dos corpos com massa, depois da visualização de maçãs e da lua. Albert Einstein reforçou esse mistério afirmando não existir nenhum caminho lógico para a descoberta das Leis do Universo que não seja o caminho da intuição. Mais curioso ainda, para mim, é o facto de alguns nós atribuirmos uma aura mística à intuição e nos entregarmos invariavelmente a ela, mesmo quando somos confrontados com decisões relevantes e tendo plena consciência que poderão mudar o rumo das nossas vidas. A intuição é como uma voz segredada, uma porta que se abre quando chegamos a um corredor estreito, uma mão que pega na nossa e nos indica um caminho no fim de uma encruzilhada, um pensamento isolado, num repente, sem que seja repentino, um sentimento cúmplice que se junta à nossa solidão. A intuição faz parte de muitas das decisões ao longo das nossas vidas. Decisões simples, decisões complexas, algumas delas sobrepondo-se à folha de papel em branco onde de um lado se anotam os contras e no outro se escrevem os prós. Por momentos somos levados a pensar que é aí que entra o coração e que é ele que impulsiona a intuição. Mas não. Isso seria atribui-lhe um conteúdo simplista e quiçá leviano. Basta observar a nossa reacção quando lidamos com a intuição dos nossos filhos ou de jovens, que já fomos. Somos invadidos por uma sensação de insegurança e percebemos porquê. Porque a intuição, que nada de místico tem, é feita de experiência, de vivência, de maturidade. Mas sabe-nos bem sentirmos o apelo desse lado, que consideramos emocional, nas nossas vidas. E faz-nos bem.

12.6.08

O que tem o acaso de tão fascinante?

Não me considero uma pessoa supersticiosa. Não uso amuletos, não coloco objectos em posições estudadas que não sejam as que me agradam por uma questão de estética, não visto uma roupa especial em determinados momentos que não seja porque os momentos são apenas especiais para mim, não escolho o pé direito para entrar seja onde for, limitando-me a entrar quando me é concedida a entrada ou sou bem vindo, não passo por baixo de escadas porque não é aconselhável, atravesso o mesmo caminho que um gato preto atravessou antes de mim, claro que me aborreço se um espelho se partir, mas por ser uma grande maçada apanhar os vidros e substituí-lo, e a sextas-feiras que coincidem com o dia treze do mês, não passam disso mesmo, de sextas-feiras que calharam um dia antes do dia catorze. Mas o acaso é algo que me fascina. É bom de ver que esse fascínio nada tem a ver com superstição. Nem tão pouco me sinto fascinado pelo acaso por se tratar de um fenómeno ou algo que acontece sem motivo ou explicação aparente, e da faceta misteriosa que o envolve. A minha admiração pelo acaso prende-se com o facto de olhar para ele como um daqueles miúdos traquinas ou um delinquente reincidente sobre quem as culpas se precipitam de imediato, antes mesmo de serem apuradas. E o acaso, a meu ver, é um jovem solteiro e há-de morrer assim. Como a culpa. O acaso dá-nos jeito. Desculpabiliza-nos quando a consciência se prepara para aumentar de peso, ou ajuda-nos a sorrir da nossa própria ignorância. O acaso faz-nos rir, enfurece-nos, deixa-nos pensativos, torna-nos uns dias crentes, outros incrédulos. O acaso pode significar sorte ou azar. O acaso também é, por vezes, um carteiro que traz boas novas, sem que, aparentemente, consigamos explicar porque elas se dignaram a vir até nós. Sobre as obras do acaso, então, o meu fascínio é inexplicável. Para além de delinquente, travesso e carteiro, o acaso também é um respeitável mestre de obras, ou mesmo engenheiro. Tivesse eu jeito para casamenteiro, e promovia um encontro com a culpa, na esperança de nenhum dos dois, coitados, morrerem solteiros. E fascinado pela certeza de ouvir alguém dizer, depois da boda, que tinha sido um feliz acaso.

Bom feriado e bom fim-de-semana.

11.6.08

O que os portugueses precisavam há trinta anos.

Um dos mais recentes Pensamentos do dia do Helder Robalo, e acredito ter a sua autorização para o mencionar sem lha ter solicitado previamente, trouxe a esta minha memória cansada, uma conversa tida com a minha mãe há mais de trinta de anos. Víviamos os três na Nazaré – o terceiro é o meu irmão mais novo – já que o meu pai resolvera voltar para Angola, recusando-se a participar no obsessivo carpir mágoas de alguns Retonados, ou a aceitar o que considerava uma esmola indigna do ex-IARN, para quem tinha dedicado toda uma vida de trabalho naquela ex-colónia. Voltou e permaneceu durante longos anos, arriscando a vida em alguns momentos e tornando-se emigrante num país que considerava também dele. Mas isso são contas de outro rosário que, eventualmente, darão palavras escritas noutro post. Voltemos à tal conversa que eu tive com a senhora que me deu à luz e criou, e por quem tenho uma profunda admiração. Numa das muitas cartas trocadas entre marido e mulher, que ela se incubia de partilhar os trechos que julgava apropriados e que poderiam contribuir para a nossa formação, o meu pai dizia-se entristecido com a pobreza do país e do povo português. Em resposta, a senhora minha mãe comentou, serena e sem manifestar a azia que a contaminava naquele período histórico que se viva e pelos tempos difíceis que a sua família atravessava, que o verdadeiro problema do povo português não se circunscrevia ao dinheiro ou a outros aspectos materiais. Do que o povo português precisava era de educação e cultura, disse ela ao marido na carta que lhe enviou. Passados trinta anos, e depois de ler o post do Helder*, não consegui evitar questionar-me. Precisava? ou precisa?

*Obrigado, Helder.

What business is our business?

If you’re planning for one year, grow rice.
If you’re planning for twenty years, grow grain.
If you’re planning for one hundred years, grow people.


Provérbio chinês, utilizado por Bob Scarpelli (Chairman & Chief Creative Officer, DDB Worldwide) numa das suas recentes mensagens no DDBlog.

São raras as vezes, infelizmente, em que as mensagens de quem nos dirige, mesmo longe, do outro lado do Oceano, estejam envoltas num conteúdo humano e que nos façam reflectir sobre o papel que cada um ocupa numa organização de dimensão mundial, com uma reputação inquestionável e com um histórico riquíssimo e respeitável. E são também raras, felizmente, as mensagens em que Bob Scarpelli, mesmo sendo ele o Chairman do Grupo, nos fala sobre a importância de new business, income, revenue, profit, margins, ebit, etc. E quando o faz, fá-lo sempre relembrando-nos a nós que fazemos parte do management por esse mundo fora, que “our business is a people business”. Assim o fez, ele que preconiza a modernização e humanização da Companhia, na sua última aparição no DDBlog, sob o (bom) pretexto que deu origem ao título It is about talent. Consta que o Bob é um profissional, que neste metier se confunde muitas vezes com a pessoa, exigente e não prima pela simpatia fácil, sendo mesmo visto por alguns olhos como um Chairman severo. O nosso negócio, o da publicidade, é um negócio de percepções, mais do que realidades. Talvez por isso eu goste da percepção com que fico, depois de escutar ou ler o Bob Scarpelli.

10.6.08

Decepcionado com Botero.

Formas generosas, a roçar a perfeição. Pele sedosa e macia. O cabelo ruivo e solto evocando o pecado. Pose libidinosa e oferecida tentando ocultar-se numa serenidade camuflada. Esta Manuela desilude-me. Por estar de costas voltadas para o mar. Bem sei que ninguém é perfeito. Ela é quase. Mas de costas para o mar? Imperdoável. Que desilusão.

(E consegui desligar o fio dependurado sem apanhar nenhum choque. Para depois me chocar com esta Manuela).

8.6.08

Um eléctrico chamado desejo.

Na essência não reside mudança.

O despertar adivinhava-se madrugador, mas a providência divina, que neste caso tem um nome, que é o do mais novo, foi benevolente. Acordar ao sábado às oito da manhã com ele cá em casa é uma dádiva que merece os meus agradecimentos. O mais velho tinha pedido, na véspera, e manifestando uma coragem que lhe desconhecia, que o acordássemos se a nossa decisão fosse rumar à praia. Pequeno-almoço de rapazes, com um deles resmungão – a coragem tem um preço, meu filho, preparativos de rapazes – onde o essencial jamais é esquecido, um café aqui ao lado, no restaurante do senhor João, e os rapazes fazem-se à estrada cedo, para ao mar se fazerem, também cedo. As meninas tinham ficado em casa, assim como muitas coisas de que demos pela falta, mal chegados ao destino. Mas para os rapazes o essencial estava lá. O mar, com ondas razoáveis, o sol, os ainda poucos veraneantes, a ausência de vento e o equipamento de bodyboard. Delicioso o programa matinal dos rapazes. Até as meninas telefonarem, perguntando quando estaríamos de volta para o almoço, que aquela não era a vida delas. Irra, que há coisas que não mudam nunca.

6.6.08

Essa é a palavra.

Encaminhei-me para a sala de reuniões, cumprindo com pontualidade o horário previamente estabelecido. Esperava-me uma senhora de que um amigo, também publicitário, me tinha falado e que tinha despertado a minha curiosidade. Uma pessoa com uma vasta experiência na área da comunicação e cuja vocação estava orientada para a vertente estratégica, uma disciplina onde a pouca quantidade de profissionais é directamente proporcional à qualidade. Há poucos e nem sempre bons. Esperava-me uma senhora por quem o meio século de vida já tinha passado há uns anos. Agradou-me ver os muitos cabelos brancos que a dona não se preocupava em escondê-los. A intenção daquele encontro, assim lhe chamámos os dois pelo telefone, recusando-nos a apelidá-lo de reunião, era dar-me a conhecer a sua experiência e competências que tanta curiosidade me tinham causado. Ouvi mais do que falei e era esse o propósito. E ouvi, deliciado, histórias do seu início profissional na área da comunicação nos tempos do PREC, seguindo com atenção o impressionante currículo na vertente estratégica, onde colaborou com muita proximidade, na criação de marcas e produtos que todos conhecemos e com que nos relacionamos diariamente. Acho que quando a conversa, mesmo no âmbito profissional, se proporciona, os pais têm uma natural tendência em falar das suas experiências como progenitores, até porque os jovens são um grupo fulcral na nossa profissão. Esta conversa, porque a minha interlocutora era uma pessoa encantadora, extraordinariamente simples, de uma imensa riqueza humana e rara honestidade moral, não fugiu à regra, desviando-se do seu rumo e enveredando por um caminho gratificante. Quando nos referimos aos nossos filhos, habitualmente usamos palavras como o orgulho, respeito, amizade, amor, carinho, responsabilidade, paixão, alegria ou felicidade. Ao falar-me dos seus, dois rapazes já homens, ouvi-a dizer com simplicidade, ostentando um sorriso radioso e num tom de voz seguro e melodioso, que tinha tido e tem muito prazer com os seus filhos. Prazer com os filhos. Prazer, uma palavra que raramente oiço e digo quando me refiro aos meus, mas quando a escutei houve tantas, mas tantas coisas boas de que me lembrei, que por breves momentos me dei conta a divagar no prazer que tenho com eles. Sim, é essa a palavra.

Bom fim-de-semana.

4.6.08

Beleza interior.

A maior parte das mulheres que conheço revelam uma auto-estima invulgar. Só elas afirmam, ou pelo menos em maior número que eles, que se arranjam e põem-se bonitas para elas próprias, para se sentirem bem na sua pele, por se sentirem bem nela, não para outras pessoas, independentemente do grau de intimidade em causa. E asseguram que desvalorizam olhares de aprovação e comentários apropriados e oportunos, não forçosamente e apenas do sexo oposto. Levam-me a crer que, para além de uma auto-estima inquestionável, valorizam a beleza interior, quando afirmam convictamente, que é ela, a beleza interior que conta e mais contribui para fortificar a auto-estima. Então não me engano quando olho para a Scarlett Johansson e vejo uma beleza interior sublime. Não fora isso e concerteza não veria uma mulher tão bela. Ou estou a ver mal?

No fio da navalha.

Ela está lá quase sempre, sem que os mais incautos ou até mesmo os mais avisados, dêem pelo fio da lâmina que se cruza no caminho da vida. Uma ceifa prestes a desferir o golpe misericordioso a espíritos que a paz abandonou e onde a solidez interior se liquefez nas agruras da vida, fazendo-nos adivinhar os tormentos e as adversidades alheias, de quem escolhe a ela pôr termo. Vicissitudes que associamos normalmente a vidas difíceis, ambientes violentos, precaridade familiar, à ausência de afecto e amizade, ou à inexistência de exemplos de força, de união e integridade. Pensamos em idades que a vida já marcou, implacável como só ela sabe ser quando deixamos que seja. Mas não a jovens, com ela pela frente, para ser vivida na plenitude, e a quem, aparentemente, faltou nada do que foi referido. A navalha estava lá, mas desta vez o fio, talvez numa distracção momentânea que poderá não repetir-se, estava do lado contrário. A minha mais velha sofreu com a desventura da amiga, como nunca a vira sofrer. Um sofrimento incapaz de ser apaziguado por se confessar desorientada, sem saber o que fazer ou como fazer, numa impotência que a amizade não deveria permitir. “Olha, obrigada, pai, por me ajudares a ser uma mulher equilibrada, ou que pelo menos se sente amada e que ama todos e a vida”. Termina assim uma das mensagens via telemóvel que me enviou, quando já junto da amiga, se acalmara por vê-la com vida. Alívio de pai, a quem uma simples mensagem relembrou que nada é permanente nesta vida e gostando de ver a sua menina, que se diz mulher, longe de navalhas, onde a fronteira entre a vida e morte é apenas isso. Um fio.

2.6.08

O comando é de quem, afinal?

Quando chegou, recentemente, uma nova experiência de televisão, num serviço integrado com internet e voz, já a promessa tão propagandeada era praticada cá em casa. Com o tempo fui-me afastando da televisão que a gestão de afectos, acreditem ou não, também passa pela gestão da caixa ex-mágica. Cá em casa só há dois comandos, um para cada uma dessas caixas, e o único que tem uma no quarto é o mais velho. E sabem que mais? Se há dias em que creio serem poucos, mas isso não me faz sequer ponderar em aumentar o parque televisivo do lar, há outros em que paira a sensação de serem demais. Não é de agora, já há muito tempo que oiço “o comando é meo”. E já perdi a conta às vezes que disse, é teo? então fica lá com ele. É que tenho a sensação que ele, cá em casa, não é de ninguém.

Um pensamento triste que se pode dançar.

Lembro-me bem dessa tarde quente de domingo, em Buenos Aires, em que o céu se mantinha teimosamente encoberto. E jamais me conseguirei esquecer do que dizia Discépolo, poeta, compositor e autor de inúmeras letras de tangos. A pequena praça não estava deserta mas as pessoas estavam dispersas, também na sua preguiça e indolência. Foram chegando, parecendo vir do nada, vestidos de negro e, em silêncio e com movimentos resolutos mas harmoniosos, começaram a retirar os intrumentos das caixas. Gente que se cala, cabeças que se viram, olhares intrigados nas caras de uns, sorrisos esboçados nas faces de outros. Os tímidos acordes do violencelo e os gemidos sussurados dos violinos, amparados pelo som vibrante dos acordeões, rapidamente encheram a praceta, parecendo reclamá-la para si num acto de posse absoluto e irresistível. Como o dele, quando a segurou nos braços. Ele impenetrável, sem que um único músculo do rosto desse sinais de vida. Ela tomada em seus braços, olhando-o, sem submissão, com o vestido de alças esvoaçando na tímida aragem que soprou naquele instante em que o tempo parou. Carlos Gardel e Ignacio Corsini sorrindo no firmamento, enquanto os passos ritmados se iniciaram com um vistuosismo que só a paixão daquele tango conseguia ocultar, num bailado nada sereno e envolto numa cumplicidade e intimidade a que os corpos se entregavam com uma energia que só a alma lhes podia dar. Ele e ela parecendo caminhar, pairando, e possuídos pela música que naquele momento só a eles lhes pertencia, numa sintonia sonhada e irreal. O tango é um pensamento triste que se pode dançar, dizia sentidamente Discépolo. Quem serei eu para te contrariar Discépolo? Mas a dança que eu vi não me deixou ver um pensamento triste. O tango que eu senti essa tarde numa pequena praça anónima de Buenos Aires não é romântico, é carnal.

Naquela tarde vi dançar o tango, mais ou menos assim.

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