21.6.08
A minha caça.
Um dos melhores textos sobre caça li-o no Nocturno e escrito por uma senhora que não é adepta, por não conceber o sofrimento alheio, o que é compreensível e merece o respeito de todos, mesmo de quem gosta de caça. Porque a caça é um momento de convívio em contacto com a natureza, um momento, ou momentos, em que temos o privilégio de desfrutar de prazeres simples na companhia de amigos, sejam eles caçadores ou não. O tema não é consensual e muito menos politicamente correcto, bem sei. No meu caso chega até a ser paradoxal porque, por exemplo, detesto touradas. Desde muito cedo, e para o caso considerarei que os 11 anos são uma tenra idade, que a caça faz parte da minha vida, em longínquas paragens angolanas. Quando adulto passei a compreendê-la no contexto expresso no texto que referi. Antes, e continua a sê-lo, a caça era um ritual, com uma confessável dose de individualismo. Na tal tenra idade, vivi a caça como um pagem vive os preparativos do nobre que serve com devoção. Preparando, meticulosamente, as vestes do meu pai, os acessórios, os apetrechos, as armas, verificando os mais pequenos detalhes e garantindo, ao pormenor, a distribuição dos cartuchos na cartucheira, como ele desejava. No regresso o ritual mantinha-se, com a limpeza das espingardas, onde a escolha dos escovilhões de arame e macios se alternavam de acordo com os resíduos de pólvora no interior dos canos, até estarem imaculados e com as estrias visíveis. Aos doze anos causei o primeiro sofrimento alheio numa perdiz incauta que, levantada pelo nosso cão, se fez ao vôo contra o vento. Com um disparo certeiro, apenas um. Senti-me um homem, confesso, apesar do meu ombro de menino se encarregar de me mostrar e fazer sentir que tudo tem um preço. Nas minhas memórias de caça entro eu, o meu pai e principalmente o nosso cão. E o instinto predador. Não há como negar. Mas nunca vivi a caça pelo número de presas que trazíamos, como se de troféus se tratassem. Deixei de atirar a coelhos desde o dia em que a minha mais velha, ainda pequenita, ficou lavada em lágrimas porque pensou que eu lhe havia trazido um animal de estimação e depois verificou que o que estava pendurado no cinturão jazia sem vida. Desde esse dia apenas as perdizes deveriam temer a minha pontaria ou zombar da falta dela. E que eu me lembre, todas elas serviram de refeição, numa caçarola e acompanhadas de puré de batata, que a minha mãe confeccionava magistralmente. Nunca pratiquei caça grossa. Porque o meu pai nunca quis que o filho praticasse ou mesmo assistisse. Para essa caça precisas de crescer, dizia-me ele quando me via cabisbaixo ao vê-lo partir para as jornadas de caça ao búfalo, golungo, javali ou ongire. E sei que mo dizia, não apenas pelo perigo, mas para obviar que vivesse a crueldade da caça grossa tão cedo. Como quando deixei Angola tinha quinze anos, da caça grossa fica apenas esta memória. Mas para mim, caça não é tanto o convívio e sim todo o ritual, principalmente no que diz respeito ao cão. O frenesim do animal. O farejar. O sentir e o escutar. O parar. A cabeça e a pata levantada. O levantar a presa e esperar que o tiro tenha sucesso. O partir para a busca e o trazê-la orgulhoso ao seu dono, abocanhada sem lhe inflingir a mais pequena beliscadura. O passeio em nossa volta com a perdiz na boca, até deixar que a recolhamos. Há mais de dois anos que não caço. Desde que o meu companheiro de caça partiu. Sei que um dia voltarei a fazê-lo, entretanto satisfaço-me com tiro aos pratos. Faz-me falta ouvir o barulho dos tiros e sentir o cheiro da pólvora na roupa. Creio ser coisa de caçador e não me preocupo em explicá-la ou em ser compreendido. E isto da caça, está visto que nada tem de hereditário pelos exemplos que tenho cá em casa, e não faço o mínimo esforço em combater ou reeducar. Este gosto pela caça, seja ela terrestre ou sub-aquática, é uma coisa minha e que morre comigo.
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24 comentários:
Pois eu caça, Mike, nem com cão nem com gato :)
caça grossa,caça fina, é tudo um desconversar da palavra matar. não gosto mais de si,não,não.
palavras que não matam:
blogar
dançar
conversar
janelar
esplanadar
espraiar
:-(
Ai, Amigo Mike, para caçadas de bichinhos sem culpa não conte comigo.
Mas posso falar do meu modo preferido de confeccionar a perdiz - a La Buena Mujer, como dizem os Nuestros Hermanos. Cozinhada em púcara de barro, com cogumelos, bacon e ervas da serra, e batatinhas embebidas no fabuloso molho!
Abraço
Cristina, nem com cão, nem com gato? Então deve ser uma caçadora exímia e experimentada, já que fazer levantar a caça sozinha não é para todos, acredite. ;)
Júlia, palavras que matam:
amar
fumar
nadar
correr
guiar
voar
sonhar
confessar
:)
Caro Réprobo, a natureza é perfeita. Eu, que na cozinha sou um inútil, caço. E o Réprobo confecciona se nenhum problema tomar de assalto a sua consciência.
Abraço.
odeio perdiz, porque na altura da caça recebia montes delas,a minha mãe tinha a mania de fazer perdiz de todas as maneiras , até canja fazia, um nojo. brrrrrrr
acrescente, Mike
CAÇAR
Bom Mike,
com a frontalidade que me caracteriza tenho de lhe dizer que não gosto de caçadores nem da caça.
Mas... (nunca julguei possível dizer isto de um caçador) depois de ler este texto, fiquei a gostar de si incondicionalmente.
Porque o compreendi e gostei do que compreendi.
E por aqui me fico, que tenho que digerir estas minhas palavras...
:-)
Júlia, considere a palavra caçar acrescentada. Achei curioso aceitar todas as outras...
Fugidia, e eu não procurando compreensão por saber que o tema, tanto quanto a experiência me tem mostrado, mantém as pessoas a favor e contra como duas linhas paralelas. :)
oh, tadinho do Mike...
já basta de bater nele, vá, vire o disco e faça rápido outro post para se redimir :-)
Mike,
mas caminhar paralelamente não é bom? Quase tocando (ou tocando mesmo) mão com mão?
:-)))
Se porventura houvesse motivo para me redimir, acredite que o faria... :)
Neste caso, Fugidia, duas linhas paralelas é o nunca se encontrarem, nem mesmo no infinito... :)
...e não achou curioso eu não as ter escolhido para a lista de palavras que não matam?
Pois se é verdade que essas que cita também matam, que remédio tive senão calar-me.
Retire pf. o nadar, o que mata é afogar :-)))
:-)
Mesmo quando lhe toco na mão e lhe peço para contar mais?
(risos)
Júlia, nadar mata a quem se aventura sem o saber fazer. Depois, claro, afoga-se. (risos)
Fugidia, (risos)
mas isso é contraditório, Mike
Como nadar sem saber nadar????
Alguem fala sem o saber? Alguem anda sem ter aprendido? Alguém ...
hmmm pense!
Nadar ou saber nadar?... Einstein inventou uma teoria que se aplica a esta questão... Por isso há quem afirme que saiba nadar mas morra afogado e há quem fale mas devia estar calado... :) :)
não desconverse, please...:-/
Desconversando, né, Mike :)
Júlia, não me peça o impossível. :)
Cristina, :)
Não preciso de dizer mais nada, pois não? Nem preciso de lembrar aqui outra vez as touradas, que o Mike detesta, e que são só outra contradição da nossa mais que duvidosa racionalidade...
A caça é um ritual antigo, próprio das espécies predadoras. E alguém aqui duvida de que somos uma delas???
;)
Meu caro Mike, o meu pequeno «post» (que refere com uma generosidade que lhe agradeço) não é, realmente, um texto sobre caça, mas sobre um piquenique acidentado. O seu, sim, desenvolve o tema de uma forma muito expressiva e sensível… Mas como sei quanto lhe desagradam sensibilidades, prefiro dizer que é um texto particularmente hábil, a defesa mais «politicamente correcta» de uma causa «politicamente incorrecta» que me lembro de ler. ;-D
Não gosto de caçadores, por razões que não são praqui chamadas, mas preferível que o provimento de carne tivesse a caça como origem, em vez do matadouro.
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