6.9.07

Africa (VIII). Algures entre Samburo e Nankuro.

Youstus era o nome dele (e espero que ainda seja, que esteja vivo para que os 6 filhos o repitam todos os dias). Um preto alto e encorpado, cidadão de um país onde não estão as minhas raízes, mas nativo de um Continente que considero igualmente meu. Ganhava a vida como guia turístico no Quénia, conduzindo, muito mal, verdade seja dita, uma van de 9 lugares. Lembro-me bem que era uma Bedford branca que me pareceu mais velha que o seu condutor, assim que cheguei a Nairobi. Velha e caprichosa já que as minhas malas se encarregou de espalhar em território Masai, quando resolveu abrir, sem que ninguém lhe dissesse para o fazer, a grande porta da bagageira. Tão indecentemente caprinhosa que por sua conta e risco dos ocupantes, decidiu separar-se de uma roda quando o velho Youstus a dirigia, como sempre mal, a uma velocidade desanconselhada, numa picada a que ele dava o nome de estrada. Estou vivo para contar o episódio porque o diabo devia estar a dormir a sesta e tive a sorte de um dos deuses a ter interrompido para ir aliviar a bexiga (estou a imaginá-lo a dizer mal dos seus pecados, ou melhor, bem das suas virtudes, porque pecados era com o outro, o que se deixou dormir). Chegámos ao lodge, lá nos confins de Mara, porque, felizmente, as rodas tinham 4 porcas e fiquei a saber que se podem fazer centenas de quilómetros com apenas 3 em cada uma delas. Youstus tinha tão mau de condutor quanto de bom conversador. Culto, educadíssimo, com um humor britânico e instruído (ah, Commonwealth, que legado). Uma manhã, bem cedo, como começavam todos os nossos dias, depois de vários quilómetros percoridos em direcção a Nankuro e já com o território Samburo a fazer parte da lembrança, atravessámos uma povoação em pleno Vale do Rift. Uma povoação que não era diferente de muitas outras por onde passáramos. Algumas casas, população sorridente e uma escola, sempre uma escola. Pedi-lhe para parar em frente à escola e ele assim fez, sem contudo conseguir esconder o seu espanto, que mais à frente seria substituído por um sorriso, as mãos no volante e os olhos na estrada. As fotografias que tirei ainda as guardo comigo. Fotografias da professora e dos seus pupilos, alguns descalços mas todos trajando um uniforme cuidado (no verso da foto escrevi batas). Estavam a ter aula de aritmética, posso afirmar a pés juntos, numa sala improvisada ao ar livre. Dei conta que havia outras salas de madeira pré-fabricada, só que estavam todas cheias. Improvisada era a sala, assim o era a ardósia, com a tabuada a ser ensinada numa caligrafia perfeita e desenhada na terra poeirenta. Com disciplina e muita alegria (que acredito ser genuína) repetiam em coro os números que a professora, de vara na mão apontada para o chão, ensinava. As mais atrevidas distraíram-se por momentos para me acenar, sorridentes, acompanhadas logo depois pela professora num acto de tolerância e cumplicidade. Ainda a velha Bedford não se tinha feito de novo à estrada, indolente e contrariada, a lenga-lenga tinha sido retomada, qual coro infantil afinado que ecoou na minha cabeça durante vários quilómetros, o tempo suficiente para pensar: deve estar muito orgulhoso Mr. Jomo Keniatta.

2 comentários:

CPrice disse...

e que sorte Mr. Mike .. sorte sua por ter essas recordações .. sorte a nossa por nos deixar como que "vivê-las" um pouco também .. :)

Mike disse...

... um pouco apenas... :)

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