7.5.08

Crónicas de uma viagem (V).

Youstus era o nome dele (e espero que ainda seja, que esteja vivo para que os 6 filhos o repitam todos os dias). Um negro alto e encorpado que ganhava a vida como guia turístico no Quénia, conduzindo, muito mal, verdade seja dita, uma carrinha de 9 lugares. Lembro-me bem que era uma Bedford branca que me pareceu mais velha que o seu condutor, assim que cheguei a Nairobi. Velha e caprichosa já que as minhas malas se encarregou de espalhar em território Masai, quando resolveu abrir, sem que ninguém lhe dissesse para o fazer, a grande porta da bagageira. Tão indecentemente caprinhosa que por sua conta e risco dos ocupantes, decidiu separar-se de uma roda quando o Youstus a dirigia, como sempre mal, a uma velocidade desanconselhada, numa picada a que ele dava o nome de estrada. Estou vivo para contar o episódio porque o Diabo devia estar a dormir a sesta e tive a sorte de um dos Deuses a ter interrompido para ir aliviar a bexiga (estou a imaginá-lo a dizer mal dos seus pecados, ou melhor, bem das suas virtudes, porque pecados era com o Outro, o que se deixou dormir). Chegámos ao lodge, lá nos confins de Mara, porque, felizmente, as rodas tinham 4 porcas e fiquei a saber que se podem fazer centenas de quilómetros com apenas 3 em cada uma delas. Youstus tinha tão mau de condutor quanto de bom conversador. Um homem culto, educadíssimo, com um humor britânico e instruído. Uma manhã, bem cedo, como começavam todos os nossos dias, depois de vários quilómetros percorridos em direcção a Nankuro e já com o território Samburo a fazer parte da lembrança, atravessámos uma povoação em pleno Rift Valley. Uma povoação que não era diferente de muitas outras por onde passáramos. Algumas casas, população sorridente e uma escola, sempre uma escola. Pedi-lhe para parar em frente à escola e ele assim fez, sem contudo conseguir esconder o seu espanto, que mais à frente seria substituído por um sorriso, as mãos no volante e os olhos na estrada. As fotografias que tirei ainda as guardo comigo. Fotografias da professora e dos seus pupilos, alguns descalços mas todos trajando um uniforme cuidado. Estavam a ter aula de aritmética, posso afirmar a pés juntos, numa sala improvisada ao ar livre. Dei conta que havia outras salas de madeira pré-fabricada, só que estavam todas cheias. Improvisada era a sala, assim o era a ardósia, com a tabuada a ser ensinada numa caligrafia perfeita e desenhada na terra poeirenta. Com disciplina e muita alegria, que acredito ser genuína, repetiam em coro os números que a professora, de vara na mão apontada para o chão, ensinava. As mais atrevidas distraíram-se por momentos para me acenar, sorridentes, acompanhadas logo depois pela professora num acto de tolerância e cumplicidade, convidando-me a entrar numa das salas. Ainda a velha Bedford não se tinha feito de novo à estrada, indolente e contrariada, a lenga-lenga tinha sido retomada, qual coro infantil afinado que ecoou na minha cabeça durante vários quilómetros, o tempo suficiente para pensar que Mr. Jomo Keniatta teria razões para estar muito orgulhoso.

(post antigo adaptado a Crónicas de uma viagem)

10 comentários:

ana v. disse...

E não têm cenas de pugilato entre alunas e professoras, por causa de um telemóvel!
Belíssima crónica, Mike. Venho seguindo a trilha desta viagem. Continue, por favor...

cristina ribeiro disse...

Silêncio, vai cantar o viajante sob o céu estrelado de África; pelo menos é assim que a imagino: com noites de céu escuro, mas cheio de estrelas.
Qualquer dia ainda vou lá confirmar; claro que isso ainda não passa do sonho :)

Anónimo disse...

Sem cenas de pugilato, Ana, apenas muitos sorrisos e muita alegria.
E obrigado.

Anónimo disse...

Cantar, nem no duche, Cristina (risos). O céu à noite, tinha dias... como o de cá, mas diferente, infitamente diferente. :)

fugidia disse...

Quando tiver tempo, vou à casa dos meus pais procurar uma revista com uma fotografia especial, de uma sala de aula improvisada...
Faço parte da turma :-)

Não me lembro do céu estrelado de África: só do caminho de estrada, paralelo, às linhas do caminho de ferro, de Benguela para Novo Redondo, com umas cores avermelhadas, castanhas e laranjas na terra e no céu, absolutamente fantásticas e inesquecíveis.

CPrice disse...

.. que todos os meninos africanos tivessem, pelo menos, esta oportunidade Caro Mike .. já na altura havia gostado muito deste seu texto. Está excelente esta adaptação :)

Anónimo disse...

fugidia, lembra-se de coisas simples mas inesquecíveis... os caminhos de ferro que começavam na cidade onde nasci, a cerca de 30km de Benguela... :)

Anónimo disse...

Once, muito obrigado. :)

PSB disse...

Mike
Excelente relato, como sempre, a fazer-nos ecoar na cabeça a lenga lenga cantada da tabuada.
Um abraço

Anónimo disse...

Pedro, obrigado.
Será que os miúdos hoje ainda a aprendem com a lenga-lenga?
Um abraço.

Arquivo do blog