4.6.08

No fio da navalha.

Ela está lá quase sempre, sem que os mais incautos ou até mesmo os mais avisados, dêem pelo fio da lâmina que se cruza no caminho da vida. Uma ceifa prestes a desferir o golpe misericordioso a espíritos que a paz abandonou e onde a solidez interior se liquefez nas agruras da vida, fazendo-nos adivinhar os tormentos e as adversidades alheias, de quem escolhe a ela pôr termo. Vicissitudes que associamos normalmente a vidas difíceis, ambientes violentos, precaridade familiar, à ausência de afecto e amizade, ou à inexistência de exemplos de força, de união e integridade. Pensamos em idades que a vida já marcou, implacável como só ela sabe ser quando deixamos que seja. Mas não a jovens, com ela pela frente, para ser vivida na plenitude, e a quem, aparentemente, faltou nada do que foi referido. A navalha estava lá, mas desta vez o fio, talvez numa distracção momentânea que poderá não repetir-se, estava do lado contrário. A minha mais velha sofreu com a desventura da amiga, como nunca a vira sofrer. Um sofrimento incapaz de ser apaziguado por se confessar desorientada, sem saber o que fazer ou como fazer, numa impotência que a amizade não deveria permitir. “Olha, obrigada, pai, por me ajudares a ser uma mulher equilibrada, ou que pelo menos se sente amada e que ama todos e a vida”. Termina assim uma das mensagens via telemóvel que me enviou, quando já junto da amiga, se acalmara por vê-la com vida. Alívio de pai, a quem uma simples mensagem relembrou que nada é permanente nesta vida e gostando de ver a sua menina, que se diz mulher, longe de navalhas, onde a fronteira entre a vida e morte é apenas isso. Um fio.

14 comentários:

CPrice disse...

Caro Mike, comovedor este seu texto. A Infelicidade pode tomar a forma de uma necessidade de acabar com a Vida? Pode.
Mas uma Vida assim partilhada com a sua menina / Mulher e um amparo tão saudável como tudo o que lhe sei, decididamente apaziguarão qualquer infelicidade que possa vir a acontecer, sendo que o meu desejo é que tal nunca aconteça.

Um abraço ao Pai aliviado e outro à menina mulher que tem aí consigo e que acabou de aprender uma lição daquelas menos .. menos .. *

ana v. disse...

Nunca há palavras para isto, Mike. Mando, em vez delas, um beijo para a menina-mulher que vai aprendendo a vida e outro para si, pai feliz de uma filha equilibrada. Estamos todos no fio da navalha, sempre.

Anónimo disse...

Obrigado, Miss Once. :)
Sorri, e ainda sorrio quando leio a parte da mensagem em que a minha mais velha diz "que pelo menos se sente amada". "Pelo menos"... quanto simplicidade encerra esta frase... :)

Retribuo o beijo, Ana, acreditando que a menina também o faria. :)

CPrice disse...

é o nosso grande objectivo na vida não é Mike? fazer-los sentir-se amados, apoiados e acarinhados no matter what :)

Anónimo disse...

Acho que não sou a pessoa indicada para a contrariar, Miss Once... (risos). :)

O Réprobo disse...

Meu Caro Mike,
é das primeira provas que a vida nos traz, muita vez, o convívio com o suicídio tentado ou efectivado, de amigos. Eu vivi-a, como provação, até, que o desfecho foi o outro, nesses 17 anos surpreendidos por não se haver verificado o mesmo falhanço de anterior tentativa.
Além do conforto do tributo da diferença de situações, Querido Amigo, há mais dois, de que me lembro - o de as Meninas raramente reincidirem no projecto de pôr cobro tão radical à sua frustração e de a contemplação desse transe difícil como que imunizar quem delas esteja próximo.
Abraço

Anónimo disse...

E a mais velha, meu Caro Réprobo, passou pela experiência com uma angústia que nunca lhe vira.
Um abraço.

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

...já todos disseram tudo, Mike.

estou a gostar de o conhecer!

cristina ribeiro disse...

Boa noite, Mike. Venho retribuir a sua amável visita (não se preocupe, porque o gato ficou lá fora :) )e desejar a todos uma noite descansada.
Até amanhã!

fugidia disse...

Mike,
crescemos sempre com estas situações, com o sofrimento dos outros e o nosso.
E o nosso papel de pais é estarmos ali mesmo ao lado, para que sintam todos os dias o amor que lhes temos.
Um beijinho aos dois.
:-)

PSB disse...

Mike
Deve ter sido uma provação difícil, imagino. Para a sua Filha e, naturalmente, para si por vê-la sofrer. Para além do sofrimento, ela retira ensinamentos tão importantes para a sua Vida, como o valor do Amor paternal, qual escudo invisível que dá tanto amparo em momentos difíceis. Quanto a si, suponho que se sinta gratificado por saber que todo o afecto investido na educação dos seus Filhos tem um bom retorno: a confiança que estabelece com eles, num Amor incomparável com qualquer outro, o porto seguro que para eles representa.
Um abraço

Anónimo disse...

Júlia, :)

Cristina, (risada)... muita simpatia a sua, ter deixado o bichano lá fora. (muitos risos)
Agradeço a sua amável visita. Uma boa noite para si. :)

Fugidia, naquela situação nada mais me restava fazer... :)

Caro Pedro, grato pelas suas palavras. Confesso que mais que gratificado, senti no momento o que escrevi, reforçando o que já sabia... que nada é garantido nesta vida.
Um abraço.

Luísa A. disse...

O convívio com estas situações, Mike, como com outras de doença grave, é muito difícil, porque nunca se está bem preparado, nunca se sabe o que fazer e dizer. Esses gestos desesperados, que a sua filha testemunhou, são, frequentemente, pedidos de socorro. Mas nem sempre… Em todo o caso, ainda bem que a sua filha esteve junto da amiga e pôde trazer-lhe o equilíbrio que faltou. E sim, Mike, o nosso papel de pais é terrivelmente complicado. Mas há mensagens via telemóvel que compensam.

nocas verde disse...

...que dizer?
E eu, filha de um Pai assim, que ao nosso lado sempre está... agradeço-lhe, menina-mulher que fui (como se a Sua já não o tivesse feito) por esse apoio que, garanto-lhe, mulher-menina que sou, permanece, fica gravado, volta e volta em cada amargura que nos vai aparecendo deste lado.
beijo

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