16.11.08
A reconquista de territórios nunca foi tarefa fácil e tem sempre consequências.
Um homem divorcia-se e, apesar de viver com os filhos, uma das perspectivas que volta a colocar a si próprio é a da reconquista de territórios outrora perdidos ou cedidos. Leiam-se territórios, espaços vitais que estão ali a nossos pés, rogando que os aproveitemos ilimitadamente. Pura ilusão. Há casos em que um homem divorcia-se mais continua a viver com mulheres, mesmo no exagero de considerar mulher uma delas, com dez anos. Às minhas filhas não lhes basta o quarto que nem é partilhado, tendo cada uma o seu. À mais nova, a de dez anos, bastou ouvir que se estava a ponderar a remodelação do quarto dela para, sem hesitar, reclamar uma cadeira para além da que está na escrivaninha. Uma bola de cristal é absolutamente dispensável para se adivinhar o uso que será (ou seria?) dado à cadeira. Elas parecem polvos de enormes tentáculos, ou medusas gigantes, ocupando um espaço e marcando um território como foras-de-lei no Oeste americano. Não o marcam a tiros, mas fazem-no com uma mestria, rapidez e talento de que só as mulheres parecem ser possuidoras. Quando as escrivaninhas delas estão incapazes de ser utilizadas, a mais nova ocupa a minha mesa de trabalho e a mais velha a da sala de jantar. Quando a minha mesa passa a estar imprópria e na mesa da sala de jantar já não cabe nem uma maçã, uma delas estende mais um tentáculo e ocupa a mesa de centro da sala de estar e os sofás. A outra, parecendo disputar um território que acredita pertencer-lhe, acerca-se do irmão mais velho e, claro, convence-o a ceder-lhe parte do quarto, empurrando-o, enquanto o Diabo esfrega um olho, de lá para fora. Os homens da casa desesperam diante da inevitabilidade de lhes sobrar o chão e parte da bancada da cozinha. Quando se aprestam a entregar-se ao que parece ser mais uma derrota, prontos para assumirem que o território foi definitivamente conquistado pelas madames, eis que a salvação chega pelas mãos do mais novo que tem quatro anos. Pai, precisamos de espaço para brincarmos às construções com o Lego. Caramba, nesses momentos, o verbo utilizado na primeira pessoa do plural soa-nos como trombetas que nos devolvem a coragem e também a crença de que algo poderá mudar e que, afinal, o território, o tal espaço vital não está ainda perdido. O prazer começa quando miramos o olhar aterrorizado das mulheres da casa. Sim, madames, preparem-se para o pior. Recolham o que puderem que a Cavalaria está a chegar. O mais novo, esse aprendiz de pirata, delicia-se, e um sorriso de predador surge no seu rosto. O mais velho grita we came in peace, you go in pieces e eu, com um sorriso cândido, mas sentindo que o poder está nas minhas mãos, apenas murmuro um hasta la vista babies. Nem questionamos o trabalho de arrumar as centenas de peças de Lego que são despejadas nas mesas e no chão das salas. O ruído é aterrorizador, mais parecendo o ribombar de canhões apontados a territórios outrora livres e agora ocupados pelas madamoiselles. Gritos, o pânico vive-se nas salas e elas tentando recolher o pouco que sobra dos seus exércitos, recuam em debandada para o escritório. Tarde de mais. O mais novo corta-lhes a retirada e o caos instala-se. Um dos baldes de Lego houvera devolvido o território que as invasoras acreditaram ter sido conquistado para sempre. Elas sentem-se perdidas, adivinham a derrota e recolhem aos respectivos quartos. O mais velho regressa ao dele e, num tom de voz que faz prever o pior, avisa que irá ler as mensagens do telemóvel que encontrou no seu território. Alvoroçadas e em pânico, saem ambas dos quartos, chocam uma com a outra, parecendo duas personagens de um filme de bonecos animados. Barro-lhes o caminho. Onde pensam que vão meninas? Mas pai... tarde de mais, não há lugar a mas. O mais novo excita-se, leva a batalha a sério e atira com uma peça de Lego à mais nova, que se enfurece. O mais velho diz que já leu cinco mensagens e ri-se. A casa está o caos, mas as cancelas da fronteira só são erguidas quando se comprometem a levarem o que lhes pertence para os seus quartos. Despojos de guerra, como lhes chamo. A dona do telemóvel implora. Levanto o braço e deixo-a passar. A que não é a dona suspira de alívio. O cão do vizinho de cima ladra empolgado com a disputa residencial que se assemelha a uma batalha campal. Despojos de guerra esperam tombados e inertes, aguardando a recolha. Dizia eu que um homem divorcia-se e pensa que a reconquista de alguns territórios é um dado adquirido. Mas não, a ocupação de territórios nunca foi, nem será, tarefa fácil ou sem consequências. Uma delas é ter que arrumar o Lego.
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19 comentários:
lol lol lol
:-)
Grande texto, Mike, que me fez rir com gosto. E também grande paciência, coragem, saúde, ânimo, energia... livra! :-)
Ria-se, menina Fugidia... porque não sabe o que é viver na "Pensão Estrelinha"... lol. :-)
Nada de mais, Ana. Se não os podemos vencer, juntamo-nos a eles... (risos)
Pois eu noto, com desgosto, Mike, que enfileira pelas tropas masculinas. Resta-me desejar que a arrumação do Lego seja um verdadeiro trabalho forçado e que as suas filhotas se lembrem de sugerir a separação das milhentas peças por lotes de portas, janelas, telhados, rodas, paralelepípedos de um por dois, paralelepípedos de dois por dois, paralelepípedos de dois por quatro, placas, bonecos, pavimentos, avulsos… É assim que temos o Lego arrumadinho cá em casa, e é assim que deve ser. ;-D
lolololololollo
(agora explodi a rir, com o comentário da Luísa)
Ora, também sei o que é viver com duas medusas-migalhas-gigantes-que-acham-que-o-espaço-habitacional-só-serve-para-acumular-papéis-papéis-e-papéis-e-roupas-espalhadas-e-e-e-e-e-e-quejandos!
:-)
bom texto!ri com gosto e segui a confusão.
que nos diz da perfeita confusão que vai na sua casinha, Mike.
E as pistas dos carros? não há? grrrrrrrr
agora entendo, Mister porqu anseia ir para a holanda.ehehhehe
Arrumar Legos é cortar-lhes a possibilidade, que parece sempre iminente, de eles se construirem a si próprios. Tal como os fios eléctricos têm aquela estranha capacidade de se enrolarem sozinhos, os Legos, se forem devidamente desarrumados, podem sempre sugerir-nos novas formas, novas dimensões, novos conceitos.
Luísa, cá em casa o Lego é arrumado à pazada. Tudo ao molho e fé nas caixas. (risos)
E peço-lhe que não dê ideias às medusas que, após a derrota têm o direito de se manter caladas e nos seus quartos, e tudo o que disserem ou fizerem pode virar-se contra elas. Até algumas peças de Lego. (mais risos)
Acredito, Fugidia. Mas estas medusas às vezes parecem polvos gigantes, saídos de contos de Júlio Verne. :-)
Júlia, a confusão na "Pensão Estrelinha" é momentânea e tem sempre fim. Se lá fosse a casa hoje de manhã encontrava-a exemplar e num brinco, mesmo antes da empregada chegar. E sim! Há pistas de carros barulhentas. (risada)
José, o método da pazada proporciona a criação desses novos conceitos que mencionas. Apesar de, por princípio, não me agradar a ideia de arrumar Lego assim porque as peças perdem fixação. Mas com o tempo fui perdendo esses princípios.
Estou rendida aos seus textos dotados de uma imensa ternura e sensibilidade. Parabéns, Mike, desta sua confessa admiradora.
Leonor, vindas de quem vêm, as suas palavras deixam-me meio sem jeito. :-)
Obrigado.
Mike, bravo ou bravo Mike? Os legos e o combóio eléctrico são dramáticos e as pistas de automóveis também.
Imagino que a sua filha queira uma cadeira extra para "arrumar" um amontoado de roupa. ;)
(risos)
Grande Jóia, digamos que as pistas, de carros e de combóio, são dramáticas, o Lego nem por isso. :-)
E claro! Que a cadeira seria para "arrumar" a roupa... coisas de meninas, certo? (mais risos)
De meninas e menos meninas, Mike, uma cadeira para a roupa dá tanto jeito!
Beijinho
"Splendid!"... e frenético! (:
Pois dá Leonor. Mas é às meninas... (risos)
Obrigado, ****. :-)
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