25.9.08
Ganhar ou perder, eis a questão.
O Mercador de Veneza acompanhou-me nestes últimos dias, devorados por trabalho intenso e inúmeras reuniões, que só uma gestão rigorosa de agendas evitou o desgoverno. Inconscientemente ou não, fiz-me acompanhar pela polémica comédia de Shaskespeare em que o cristão e bem intencionado António é vítima do agiota e vilão Shylock. Se por um lado escolhi o Mercador de Veneza como companhia, por outro lado a célebre frase Ser ou não ser, eis questão, imortalizada pela Tragédia de Hamlet, teimava em permanecer ancorada no meu íntimo. O lado oculto do dramaturgo e poeta inglês sempre me fascinou. Independentemente do talento, competência e porque não genialidade, dessa figura ímpar e quiçá uma das mais influentes da cultura ocidental, a minha faceta mais preversa e obscura leva-me a ceder a impulsos sombrios, considerando em certa medida, exemplar o aproveitamento por parte dos súbditos de Sua Magestade da figura de William Shakespeare em prol da cultura britânica. Algo idêntico ao nosso Vinho do Porto, desprezado pelos portugueses até os ingleses o tornarem famoso, o que me fez pensar que o meu lado preverso também foi moldado pelos contornos sombrios da História. É que as obras e a reputação do autor do Mercador de Veneza, criadas no século XVI, só foram aclamadas e idolatradas três séculos depois, em especial no Romantismo. Mesmo quando algumas das suas obras faziam sucesso em Londres no século XVII, Shakespeare não conseguiu mais do que ser considerado um simples cavalheiro de Stratford. Não existem originais, tanto quanto se sabe até à data, nem mesmo em Stratford-upon-Avon, sua terra natal, onde cresceu e constituiu família, não se podendo afirmar e provar que o génio os tenha escrito ou, indo mais longe, soubesse sequer escrever. Consta que as filhas eram analfabetas e mesmo tendo em conta o século que se vivia, a minha compreensão tem limites. O mistério adensa-se após a sua ida para Londres e a única certeza que parece pairar, para além da obra de valor inestimável, é o facto de Shakespeare se ter tornado num arguto e bem sucedido homem de negócios, originalmente ligado ao teatro como empresário, mas alargando os seus investimentos em imóveis e terras. Também parece certo que Shakespeare não resistiu a tentações pouco abonatórias de um carácter exemplar, tendo sido acusado de fuga aos impostos ou de negociante de produtos escondidos durante um período de escassez de alimentos. O pouco que conheço do poeta e dramaturgo mostra-me uma pessoa sagaz, curiosa e de ampla visão, principalmente para época em que viveu, para além de um profundo conhecedor do ser humano, ou não pudéssemos nós identificar na sua obra reis, rainhas, príncipes, cortesãos, ministros, soldados, donos de estalagens, mulheres do povo, mercenários, actores, padres, escroques ou mágicos, tendo até desprezado as fronteiras nacionais nas suas peças e nos seus dramas, que decorrem na Dinamarca, em cidades italianas, na Grécia e Roma antigas. Reli o célebre verso citado por Hamlet e entreti-me a deslê-lo, como apregoa Mário Quintana, sob a óptica dos negócios, cometendo provavelmente um sacrilégio na perspectiva de quem estudou a fundo Shakespeare, quer do ponto de vista da literatura, quer filosófico. E nessa desleitura imaginei outra frase que poderá ter norteado a sua vida, sem contudo ter sido proferida ou ficado para a História. Ganhar ou perder, eis a questão. Uma questão que faz parte da vida, algo em que Shakespeare pareceu ser igualmente sábio, ele que se reformou com um conforto que a sua obra, na altura, jamais lhe poderia ter proporcionado. Não sou tão fundamentalista ou dramático, contento-me em saber que na vida ganha-se e perde-se. E a questão não é matemática ou o balanço estatístico. E o segredo está em nunca desistir de ganhar, mesmo quando se enfrenta uma derrota, ou ter receio em enfrentar uma batalha, caso contrário jamais se poderá vencê-la. E voltei ao Mercador de Veneza mas já sem conseguir evitar o meu lado preverso e sombrio, e desler William no lugar do vilão.
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15 comentários:
Santo Deus, Mike! O dilema «ganhar ou perder» parece-me ainda mais complicado do que aquele em que foi beber inspiração. Levanta, desde logo, esta questão fundamental: ganhar ou perder o quê? Porque, às vezes, é perdendo que se ganha e ganhando que se perde. Perder ao jogo, por exemplo, é ganhar aos amores. Ou, pelo menos, ganhar a simpatia do vencedor. E ganhar dinheiro pode ser perder a liberdade. O que não significa perder a felicidade… Ou talvez. O certo é que não se ganha a felicidade, ganhando fortuna… Mas também não se perde. Porque ganhando fortuna, podem ganhar-se alguns amores… Não sei, Mike. O que é que acha? ;-D
Ganhar ou perder, eis a questão? No caso o homem ganhou, não há dúvida. Hoje em dia põe-se em questão que tenha sido ele a escrever as peças que o tornaram famoso, e até que o autor delas tenha sido uma só pessoa... mas a verdade é que o nome eternizado é o dele. Talvez fosse analfabeto, mas era espertíssimo, de certeza!
:)
Acho que perderia a qualquer coisa consigo, é o que eu acho. (gargalhada)
Ah, então não vem mal nenhum ao mundo com a minha desleitura. (risos)
A intuição diz-me que o senhor William tinha qualquer coisa de vilão. ;-)
A propósito de não se encontrarem originais (e do possível analfabetismo e por aí fora) surgiram teorias absolutamente fabulosas sobre quem teria sido William Shakespeare. Teria mesmo existido um indivíduo assim chamado que tivesse escrito tudo o que se lhe atribui? Seria um simples caso de alguém a escrever com pseudónimo? Seria um colectivo? Das que ouvi, a minha preferida é: o escritor/dramaturgo/poeta William Shakespeare não existiu, era o pseudónimo de um sujeito chamado... William Shakespeare.
Oooops! Só depois de clicar no envio é que reparei que a ana v. já tinha introduzido o assunto. Peço desculpa à própria, ao mike e a todos/as pela repetição desintencional.
Nada a desculpar, caro José, o Alfredo. Até porque introduziu uma teoria que eu nunca tinha ouvido... a do pseudónimo do próprio! Essa é genial.
Não fui eu que introduzi, eu só citei de memória. Penso que foi alguém que assinava Anónimo.
José, pelos vistos não é só a mim que a face oculta do pseudónimo William fascina. E não é que continuo a achá-lo um vilão? Brilhante, genial, mas vilão. Acho que a questão para ele era ganhar ou perder, mas ficou famoso por ter escrito ser ou não ser.
Se põe a questão no plano dos ganhos e perdas, Mike, direi que quando li pela primeira vez Shakespeare, logo soube que tinha ganho muito em conhecê-lo.
:-)
Diz-me uma "especialista" que vive comigo (risos)que sim, que ele sabia escrever: existe em Stratford a escola onde ele aprendeu a ler e a escrever (o nome dele faz parte dos alunos).
:-)
Sendo certo, acrescento eu, que me parece natural que as filhas fossem analfabetas (era, infelizmente, normal, entre as mulheres).
E o Mister, qual é o seu lema?
E tem pinta de vilão, tem? (risos abafados)
:-)))
Cristina, nesse caso somos dois a juntar aos muitos milhões por esse mundo fora. :-)
Fugidia, antes de mais peço que agradeça em meu nome à "especialista" que vive consigo por ter contribuído para a minha cultura geral e conhecimento de Shakespeare em particular.
Por fim, se há coisa de que não tenho pinta, é de vilão. :-)
E o meu lema... hum... o meu lema... ainda estou baralhado depois de ler o comentário da Luísa. (risos)
Caro Mike, por favor, não faça como a Delia Bacon e uma quantidade de fanáticos depois dela, que chegaram a atribuir as autorias das obras aos nomes mais fantásticos, até à Rainha Isabel! Que o homem sabia escrever, mostra-o o testamento, onde, pelo seu punho, deixa à Mulher a sua segunda melhor cama... As filhas não sabiam ler? Mas se era popularíssima então, salvo na Aristocracia, a ideia de que vinha mais felicidade a um homem de a cara-metade lhe saber fazer um pudim, do que conhecer Grego...
E a incorporação era o tipo de cultura dos prodissionais de Teatro da época. Nem todos tinham era génio.
Deite-se com a Sua Portia, que nos ensina a medir as coisas muito bem...
Abraço
"It blesseth him that gives and him that takes". Diz-me Portia, ensinando-me a medir as coisas bem, sem contudo afastar de mim o lado oculto de William.
Abraço, caro Paulo.
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