6.8.08

Gostarmos mais de nós próprios do que...

No visor do telemóvel vi o nome dele, um velho amigo de uma recente amizade, e com quem tenho o hábito de me encontrar de tempos em tempos. Atendi. Os cumprimentos do costume, as palavras cordiais, as perguntas habituais. Olá, estás bom, que é feito de ti, tens tido muito trabalho, como tem passado a tua mãe, e os miúdos? Respostas às perguntas numa reciprocidade cadenciada fizeram-me entender, pelo tom de voz, que cedo chegaria o pedido de um tempo meu para que o ouvisse sem ser pelo aparelho que tínhamos encostado ao ouvido. Vem cá a casa. Estou sozinho, mas olha, não tenho o que te dar para jantar, disse-lhe sabendo que era do meu tempo que se alimentaria naquela noite. Queres que leve vodka? não que tenho cá disso. Depois de ter chegado, rapidamente dispensámos as trivialidades para nos dedicarmos ao que o trazia. Divorciado, com filhos e pai presente apesar das contingências. Quantos de nós, ironia das ironias, não nos tornamos mais presentes depois da separação nos bater à porta, fazendo-nos repensar as prioridades da vida? Mas isso é outro assunto, que o que o tinha levado até cá a casa era, suspeitava eu, alguma gaveta mal fechada e que teima, por vezes, em impedir que nos sintamos completamente resolvidos, para usar um termo em voga. Mas não, para meu alívio, que o sabia ter vivido a grande paixão da vida dele, e quão destroçado ficara com a separação, sempre vivida com uma dignidade louvável. Afinal existia, entre várias, uma grande dúvida, que tinha tanto de grande como de boa, na minha opinião de amigo. Sentia-se curado. Curado de um mal que lhe atacara o coração e que o tempo, esse fiel amigo que nos ampara e que apenas nos pede paciência para o vivermos um dia a seguir ao outro, se mostrava relutante a colaborar. Ou seria a ferida que de tão grande ser exigia mais dele? A explicação chegou, sem que ele mesmo esperasse, quando me disse que sentia que já começava a gostar mais dele próprio que dela, da ex-mulher. Mesmo não sendo médico das malediciências do coração, arrisquei dizer-lhe que achava que estava curado, ou para lá caminhava a passos largos e seguros. Redescoberta sã, essa de gostarmos de nós, de nos disciplinarmos a colocarmo-nos em primeiro lugar, contra tudo o que é preconizado socialmente e, no caso dele, e porque não assumir no meu também, fruto de educação. Paradoxal? Não! Foi essa mesma educação que nos orientou, e bem, a pensarmos nos outros, mas que simultaneamente, deixou uma herança de amor próprio e auto-estima de que não devemos abdicar nunca. Ainda bem que havia vodka. Não que houvesse ainda alguma ferida que precisasse de álcool, mas a nós soube-nos bem.

10 comentários:

fugidia disse...

:-)

Em tempos, li (e postei sobre ele)um livro (Steve Biddulph - O segredo das crianças felizes) onde o autor, num capítulo dedicado à necessidade de os pais saberem conservar energia, diz que, na nossa sociedade, «a paternidade/maternidade já não é partilhada e facilmente os pais caem no erro de achar que têm que ser “super pais” e “super mães”; ou seja, têm que, sozinhos, satisfazer todas as necessidades de amor, afecto, comida, bebida, educação, divertimento, segurança, roupa e asseio dos seus filhos». Com o tempo, cansados, doentes, sobrecarregados de tensão, acabam por atingir um ponto em que deixam de conseguir ser pais sendo que, normalmente, os pais mais tensos são aqueles que têm para consigo os padrões de exigência mais elevados, acabando por colocar as suas próprias necessidades num nível muito baixo da sua lista de prioridades.
Conclui o autor deste livro que há três responsabilidades que cabem aos pais, por ordem de importância:
1. Cuidar de si próprios (sim, é verdade, esta é a primeira!!!);
2. Cuidar do cônjuge (se houver) e
3. Cuidar dos seus filhos.

Ao lê-lo, Mike, sorri. Eu ainda estou a aprender a tentar seguir a ordem referida... mas ainda me esqueço, por vezes :-)

(P. S. A coca-cola não teria sido melhor? ;-) )

Anónimo disse...

Fugidia, nunca li nada do autor que menciona, mas concordo completamente. A vida ensinou-me que o núcleo familiar é o casal e como o casal é constituído por duas pessoas diferentes... :)
p.s. - nops! vodka tónica bem gelada (e sem limão)! (risos)

ana v. disse...

A ordem de prioridades parece-me certíssima. Se não cuidarmos de nós próprios será impossível cuidarmos bem dos outros, e o que acontece é que acabamos por asfixiá-los se não tivermos vida própria.

Quanto a vodka tónica sem limão... jamé!

Tâmarinha disse...

Gin Tónico... só com gelo!
(;*
Quanto às prioridades, nunca fui casada, por isso não serei a melhor pessoa para dissertar sobre o assunto, mas como filha de pais divorciados, e como menina de 23 anos, acho que posso afirmar que se não cuidarmos de nós dificilmente cuidamos dos outros... e quanto ao "asfixiar".. Ana, como te entendo!

Anónimo disse...

Gin tónico só com gelo é que é filhota. ;)
A menina pode afirmar e afirma muito bem... digo eu, o pai que te asfixia... (risota)

Luísa A. disse...

Talvez cada momento tenha o seu equilíbrio. E há-os, de facto, em que temos de ser a nossa própria prioridade. Ainda assim, Mike, acho que sou mais feliz nas fases em que não estou tão «self-centered». Sem prejuízo, naturalmente, dos cuidados elementares com a boa forma e a boa apresentação… ;-)

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

tudo passa por aí, pela auto-estima, pois claro!

Anónimo disse...

Luísa, esse equilíbrio torna-se mais instável quando passamos a ser pais, não é? :)

Tudo, tudo, Júlia?
Hum... não estou tão certo assim... ;)

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

não seja espirito de contradição.claro que não é tudo,tudo.

José, o Alfredo disse...

Já lá dizia o outro (o Eduardo Homem, se não me engano demasiado): Se eu não gostar de mim, quem gostará?

Curiosamente, o pregão evoluíu, recentemente, para uma formulação mais taxativa e unívoca, talvez um pouco mais materialista, mas essencialmente no mesmo sentido: Se eu gostar de mim, quem não gostará?

Não faço ideia o que é que quero dizer com isto, mas ocorreu-me.