24.7.07

Só se vive uma vez.

Esta é uma história supostamente verídica que se passou em tempos idos, a quem nós, os primos mais chegados, chamamos, com toda a propriedade, lenda.
Partiu dela a primeira carta. Na missiva dava conta do profundo e sincero pesar pela morte de seu pai, que com ele vivia numa França longínqua, para onde tinham partido, como tantos outros, fugindo de uma miséria injusta, em busca de um qualquer trabalho e, acima de tudo, de uma dignidade que aqui sentiam inalcansável. Uma prima dela tinha sido o arauto da má nova. Sem nunca confidenciarem um ao outro os seus sentimentos, trocaram correspondência amiúde ao longo de muitos anos, vivendo naquele frenesim da espera do carteiro, dos envelopes abertos à pressa e das repetidas leituras em silêncio. Ele num desassossego e ela em sobressalto. Não conseguiam evitá-lo, nem tão pouco queriam, que aquele frenesim só deles alimentava-lhes o coração tal como o sangue que lhes corria nas veias. Nunca se viram, nem quando ele regressava à sua terra natal para um breve período de férias. Nunca se proporcionou, diz ela hoje, resignada, e com um leve encolher de ombros. Os tempos eram outros, não havia férias todos os anos e quando as havia não abundava o dinheiro para luxos. Nunca se viram mas conheciam-se tão bem que às vezes se julgavam capazes de se descreverem um ao outro, acreditando que se um dia se encontrassem, bastaria a presença dela na Gare de Santa Apolónia para ele a reconhecer de imediato. Que entre mil rapazes saberia a quem acenar, diz ela. Havia de ser o mais bonito, reforça, numa ilusão que a realidade do seu sentir, lhe fez ver quem nunca vira. Ele morreu novo na, agora maldita, França que o acolheu como o seu país só o fez depois de morto. Ela trajou-se de luto para lhe prestar uma última homenagem fúnebre, um luto que se perpetuou porque viúva se sentia sem nunca ter casado. Era um belo homem, diz ela com convicção. Porque é que nunca foi ter com ele? Para quê? estava destinado que seria assim, diz, com o olhar perdido no vazio. Não estava nada, que raio. Eu teria ido.

2 comentários:

CPrice disse...

conheço esse encolher de ombros e esse ar ausente .. mas também reconheço o palpitar do coração e o alimento da alma que assim se proporciona ..
Bela "lenda" mike ..
Obrigada pela partilha.

Mike disse...

You're welcome miss.

Arquivo do blog