Um telefonema inesperado, atendido com relutância por se tratar de um número privado, fez com que andasse vinte seis anos para trás. Vinte seis anos que separavam mais de vinte homens, outrora jovens, que se conheceram quando a nação e o dever os chamou para prestarem o nada consensual, já naquela altura, serviço militar obrigatório. Se o serviço militar era obrigatório, o facto de termos sido todos, orgulhosamente, Fuzileiros Navais, deveu-se a um acto voluntário. Cada um de nós com as suas razões para termos sido voluntários numa tropa de elite. O Sam foi o principal responsável por termos jantado, ele que vive na Suécia desde que saiu da tropa, e para quem as visitas a Portugal são cada vez mais esporádicas. Falámos da vida que entretanto passou, das esposas, dos filhos, dos divórcios, dos empregos, das carreiras. Entre risos e gargalhadas relembrámos episódios e histórias passadas, como cadetes e futuros oficiais, durante a implacável e longa recruta de seis meses na Escola de Fuzileiros em Vale do Zebro. Afinal, e como um de nós fez questão de lembrar, somos todos “filhos da escola”, um nome carinhoso para quem passou por aquela Casa. Uma Casa onde se entra menino e sai-se homem, onde fomos levados e conhecer os nossos limites psicológicos e físicos, onde aprendemos o rigor, a camaradagem, a entrega e o espirito de equipa. Onde as experiências partilhadas pelos mais antigos, que conheceram a fronteira ténue da morte no Ultramar, nos deram uma perspectiva diferente da vida. Há mais de vinte anos que não dizia isto porque nunca encontrei compreensão e desisti de discutir o assunto. Tal como antes, hoje continuo a não esperar entendimento e manterei a minha recusa em discuti-lo. Apenas continuo a achar que nada substituiu o serviço militar obrigatório para as gerações de hoje. Ou melhor, algo o substituiu, mas algo incomparavelmente pior. Lembro-me bem dos argumentos contra, como se fosse hoje. Já não estamos em guerra, é um tempo perdido, cortam-se carreiras profissionais aos jovens, propaga-se uma mentalidade militarista, e por aí adiante. Tudo conversa fiada, de circunstância, sem conhecimento e politicamente correcta. Uma conversa que esquece a essência. A formação de homens. Os homens que muitos pais não formam, a escola também não o faz, a universidade idem, e a sociedade não está para aí virada, apenas se queixando que cada vez há menos homens, entre os seres do sexo masculino.Há um ano atrás não consegui evitar um sorriso e escrever sobre isso, quando o Tomás Morais, responsável pela Selecção Nacional de Rugby que tanto orgulho devolveu aos portugueses quando participou no campeonato do mundo em França, decidiu que parte da preparação seria feita na Escola de Fuzileiros. Ele sabia que iria precisar de guerreiros mesmo em tempo de paz, que iria precisar de homens. E nesse campeonato, mesmo sem troféu, ao contrário de outros, também sem troféus, o país teve-os.