29.11.07

África XVIII. Eu tive sorte.

Os meus pais são da geração da menina dos cinco olhos, mas eu, felizmente, já não conheci essa menina que, só de a imaginar com cinco olhos, qual alien chegado do espaço em movimentos contínuos, num vai-e-vem impiedoso sobre as nossas pobres palminhas e deixando as mãos marcadas durante dois dias, até me arrepio. Eu tive sorte. Sou da geração da reguada e dos puxões de orelhas e esses, as marcas que deixavam não duravam mais que um par de horas (as marcas visíveis, claro). Reguada ou puxão de orelhas eram a consequência habitual e esperada para erros imperdoáveis ou comportamentos inadequados. Punições sem surpresa para os preguiçosos, mal comportados ou teimosos. Os meus filhos estranham e divertem-se deliciando-se com essas histórias de reguadas e puxões de orelhas (mas puxavam mesmo a orelha pai?), histórias que necessitaram do aval da avó para passarem a credíveis. Eles são da geração do diálogo... apesar de, devo confessar, ser apologista e praticante, da pedagogia activa. É raro, mas às vezes os calções do mais novo ficam com pó acumulado e convém sacudi-lo. Bom, mas ainda bem que eles são da geração do diálogo, e quer se queira, quer não, vivem a escola de uma maneira diferente da que eu vivi, principalmente na primária. Não vou tocar na competência dos docentes do meu tempo Vs os actuais; não vou aflorar a dedicação dos professores do meu tempo Vs os de hoje; não vou sequer mencionar a palavra vocação... raios, já mencionei... vou ficar-me apenas pelo viver a escola. A memória que guardo, onde entram as ditas reguadas e puxões de orelhas, a maior parte deles, diz-me ela, justos, é a da vida ao ar livre, das janelas das salas de aula abertas, os recreios solarengos, a escola ampla, arejada e cuidada, o regresso a casa a pé onde havia sempre tempo para um mergulho no mar (nem sei como nunca lá ficou nenhum, que nós éramos todos uns miúdos da primária), num caminhar jogando à bola na estrada, fugindo que nem loucos quando um carro se aproximava. Guardo boas memórias da escola, com reguadas e puxões de orelha à mistura. Memórias de escola vivida diferente da memória que os meus filhos guardarão. Nostalgia? Não, realidade. Realidade dos dias de hoje, realidade de uma liberdade que eu tive e nem eu consigo deixar que eles tenham, mas como quem não sabe é como quem não vê, ou como quem não viveu, não sente, apenas acho que vivi a escola de uma maneira diferente. Lá, em África, onde estão as minhas raízes. E por falar em dias de hoje, foi com agrado que verifiquei que a minha escola primária está como eu a vivi.

2 comentários:

Ka disse...

Estive a ler este post e constato que apesar de ter menos uns anitos (tenho 35) poderia ter sido escrito por mim :)

A minha professora da primária foi também professora do meu pai e da minha irmã mais velha. Tinha uma régua de madeira cm metal no meio para não rachar e levei cada reguada...lol já para não falar nuns puxões de orelhas...hehe mas não fiquei com nenhum trauma nem tive de andar em psicólogos.

Beijinho

Mike disse...

É porque não se perdeu nenhuma reguada nem nehhum puxão de orelhas (risos)...

Um bom dia Ka.

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