15.7.08

As amarras apetecidas do passado.

Há dias em que tenho a sensação que não me esforço o suficiente, outros em que a sensação que me chega é a de, na verdade e de facto, não haver razões para isso. Razões para sentir um apego que a memória, pelo menos de muitas pessoas que conheço e com quem privo, perpetua ao longo do tempo. Um apego a raízes, princialmente às pequenas coisas, aos detalhes, sejam eles objectos, trajectos, cheiros, frutos ou momentos que sei acompanharem essas pessoas para o resto da vida. Às vezes penso que ser homem não ajuda a contribuir para que essa sensação esteja mais presente, sabendo que a sensibilidade feminina é rainha e se manifesta de forma ímpar em fenómenos como este, isto para além de, como me disseram um dia com propriedade, a memória ser feminina. Sensações que trazem a nostalgia do sabor de um fruto, que a memória transforma o momento precioso da lembrança num momento suculento, ou de uma camilha, uma toalha bordada ou uma lareira que têm o condão da transportar as pessoas para um passado capaz de ser vivido no presente. Tive uma infância maravilhosa em Angola, num clima familiar sereno e equilibrado, rodeado pela natureza e pelo mar. Uma infância em que se tivesse que escolher uma palavra para a definir escolheria liberdade, com tudo de bom que essa palavra possa significar. Mas o passado, mesmo o recente, parece-me sempre longínquo. Um outrora que teima em ficar para trás, sem qualquer espécie de vínculo no presente. Talvez não me esforce o suficiente para o recuperar. Talvez me tenha habituado a viver assim. Victor Hugo em Os Miseráveis fala-nos das armadilhas do passado, Oscar Wilde diz-nos que não o devemos temer e Vergílio Ferreira em Estrela Polar acrescenta que passado não é cronologia. Um terapeuta daria mais um sem número de explicações para esta minha falta de apego ao passado. Não porque sinta que o meu seja uma armadilha, ou será?, ou porque o tema, e cronologia não é algo que possa associar-se ao meu passado. Claro que tenho lembranças de pedaços, mas são tão poucos e tão difusos quando comparados com os pedaços de outras pessoas, que os recordam como se os vivessem no momento presente. E agrada-me ouvi-las falar do passado, mas sem conseguir evitar o paralelismo de me agradar o bebé no colo de uma mãe enternecida, sem desejar, contudo, que fosse meu. Tenho consciência da importância que o passado tem no nosso presente e do que este representa quando se torna passado à chegada do futuro. Consciência que deixa claro o que perco no implacável deve e haver da vida. Não sei o que é nostalgia. E disciplinei-me, sem esforço, devo confessar, a apegar-me a outras coisas, às coisas que o passado não nos faz carregar, muitas vezes como um fardo, às coisas que o presente nos entrega, como uma dádiva, que por não terem que ser carregadas me fazem viver livre de amarras, mesmo que momentaneamente possam ser olhadas como amarras apetecidas e desejadas. Mas não deixam de ser amarras.

14 comentários:

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

oh,Querido Mike, apetece-me chorar depois de ler o seu texto.

Anónimo disse...

Ai que isto não era para chorar, menina Júlia. É para sorrir e desejar o que nos é dado a viver hoje. :)

O Réprobo disse...

Mas, Caríssimo Mike, não servem as amarras para impedir que andemos à deriva?
Todos nos apegamos, mais ou menos, salvo os que o sofreram como agressão e que hoje são assombrados por essa nemória. Há é maneiras sistemáticas de o fazer e, outras, mais esporádicas, concordo.
Abraço

Anónimo disse...

Sempre assertivo e clarividente, Caro Réprobo.
Abraço.

L. Rodrigues disse...

Se bem li, creio também padeço de um déficit de nostalgia.
Ou pelo menos tendo a deixar a memória à memória, sem tentar cristalizá-la em objectos ou símbolos.

Anónimo disse...

Bons olhos te leiam, caro L. Sem ter a certeza se estavas a ser irónico, dir-te-ei que então já somos dois.

ana v. disse...

Se isso não nos impedir de viver o presente e de preparar o futuro, não vejo mal nenhum em conservar as boas lembranças do passado. São âncoras, como diz o Paulo. Dão-nos segurança e "lastro", Mike. :)

Cristina Ribeiro disse...

É isso. Sem perdermos a capacidade de vivermos o agora, as amarras são parte de nós. E o Mike já viu como eu sou pessoa delas :)

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

Querido Mike,

saudades e um xi-coração


ps- a praia está óptima

Anónimo disse...

Hum... Ana, âncoras são aquelas coisas que fazem com que os navios fiquem no mesmo local... :)

Cristina, pelo menos as amarras são mais leves que as âncoras e podemos soltá-las sempre que quisermos... :)

Júlia, que simpatia a sua... :)
Boas férias e boa praia.

ana v. disse...

Quando queremos que eles fiquem, sim. Mas as âncoras também se recolhem sempre que quisermos, e só nos prendem ao chão quando nos apetece fundear.
Se elas não existissem, a navegação seria sempre ao sabor de ventos e marés, e nunca dependeria da nossa vontade.
:)

Anónimo disse...

Hum... atrevo-me a discordar, e sei que estou a desconversar, mas um bom e experimentado marinheiro sabe aproveitar os ventos e as marés para navegar de acordo com a sua vontade. :)

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

já corrigi, Mike, está mais light :-)

ana v. disse...

Ou convence-se de que está a fazê-lo, o que vai quase dar no mesmo.
As forças da natureza não se dominam, apenas nos dão essa ilusão...
(isto é para continuar a desconversar, de acordo com o espírito da casa) :)

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