29.8.07

África (V). A saudade às vezes é morna

A morna é uma das formas musicais de Cabo Verde, onde a música é mais rica, digo eu, um angolano, do que na terra onde estão as minha raízes. Escolhi uma morna e não uma coladeira, funaná ou uma mazurca porque esta morna, imortalizada pela voz inconfundível de uma senhora, a maior embaixadora cultural do seu pequeno país fala de algo que só nós, portugueses, entendemos e conhecemos o seu verdadeiro significado. E porque, nem sempre, apenas às vezes, sinto saudade. E quando ela é morna, lá para aqueles lados, chama-se sodade.

http://www.youtube.com/watch?v=OabD8gr3Hjs&mode=related&search





28.8.07

Claro que não tinha entendido.

Entre aprazíveis banalidades, ia já a conversa madrugada dentro, o olhar do amigo fixa-se no dele e a pergunta chega num tom de voz meio contido. Como é isso de um homem divorciado viver com os filhos? É como uma mãe divorciada a viver com os filhos, acho eu. O silêncio instalou-se por momentos, com um a tentar perceber o significado da resposta, sem sucesso, e o outro a dar-se conta que na sua resposta a palavra mãe tinha ocupado o lugar do sujeito da frase. Ele não era um homem divorciado a viver com os filhos. Era um pai a viver com os filhos, só que era era divorciado. Será que o amigo tinha entendido? Claro que não tinha entendido, nem tal lhe era exigido. Não porque o QI do amigo fosse inferior ao normal ou porque fosse alguém despido de sentimentos e emoções, senão não seria seu amigo. Tinha a experiência de ser divorciado, mas faltava-lhe a de ser pai. Deve ser duro. Às vezes. E como é que te safas? Estando feliz, sereno. Mas e a organização da casa, os horários, as refeições? O que é que têm? Deve ser complicado. É, de facto. O amigo abanou a cabeça num sinal misto de compreensão e admiração e a conversa voltou às aprazíveis banalidades, sem nunca se terem aflorado, sequer, as coisas boas. Ainda bem, pensou ele. Se há tantas coisas boas que uma mãe divorciada a viver com os filhos não consegue explicar porque é que um pai divorciado a viver com os filhos conseguiria?

27.8.07

África (IV). As cores e os cheiros.

Em África, a das minhas raízes, são muitas as cores e os cheiros. Mais do que aquelas que conseguimos contar, imaginar ou cheirar. Há cor em tudo. Sabiam que lá a areia muda de cor? Ou o mar? Ou o céu? Ou as folhas das árvores? Cá também? É verdade, têm razão, mas não se liga muito a isso, pois não?
Lá há as cores garridas e alegres dos panos das negras*, das quitandas transportadas num equilíbrio instável sobre cabeças de cabelos entrançados, e as cores das fitas dos guiadores das bicicletas. As mil e uma cores das mil e uma frutas diferentes que nos acompanham durante 12 meses, sem que as estações do ano tenham influência nisso. Lá não se diz que cheira a laranja, sabiam? Lá diz-se que cheira a laranja da Quileva, que tinha uma cor diferente da do Cubal ou do Balombo. As pitangas não são todas da mesma cor, há as pretas e as vermelhas em tons diferentes. Pois muito bem, lá ou cheira a pitangas pretas ou vermelhas. Há um cheiro que levarei comigo até que a porta da eternidade se abra: o da terra molhada nos planaltos perdidos e abandonados da savana africana. O cheiro da terra calcinada por um sol impiedoso, e que parecia sorrir quando as primeiras gotas de água lhe faziam acreditar que a seca não era, afinal, eterna. Um cheiro que dura breves minutos, menos que os que dura aqui e que precisa de ser cheirado, jamais poderá ser descrito. Lá até as noites têm cor. Dependia para que lado a lua estivesse virada. Também as havia escuras como o breu, quando ela estava virada do avesso. Cá diz-se que está lua nova, não é?

* Desde que vim para Portugal que deixei de usar o termo pretos, não sei bem porquê, parece que é mal visto por nós, os brancos. Devem ser complexos do passado.

20.8.07

É de pequenino que (não) se torce o pepino

Uma manhã, estava eu na praia a fazer castelos de areia para o Pedro os destruir, como ele gosta, ainda vou eu a meio do segundo, brincava uma mãe com a filha com um daqueles zingarelhos de abrir e fechar os braços com a bola a ir de um lado para o outro. O que me chamou a atenção não foi a mãe, não senhor, foi um miúdo que, com um ar espantado interrogou o progenitor: pai aquilo é um jogo de perder? Fiquei a pensar porque o raio o garoto colocara a questão daquela maneira quando era esperado que, no mínimo, questionasse o pai sobre se o jogo era de ganhar e perder, já para não dizer apenas ganhar. Comentei com o meu filho mais velho e ele, sem pestanejar disse-me, convicto, que era porque o miúdo era do benfica. Não fiquei muito convencido, mas aceitei a resposta do Miguel Jr.

Esta não estava no programa

Um clube que foi longe na Liga dos Campeões na época passada; um clube que esteve a lutar pelo título e que por falta de sorte ocupou apenas o terceiro lugar no pódium na época 2006-2007; um clube que, já na presente época venceu o primeiro jogo da pré-eliminatória da Liga dos Campeões, estando por isso em posição privilegiada para ocupar o lugar que merece na mais alta roda do futebol europeu, quer pelo futebol praticado, quer pelos seus pergaminhos; um clube que venceu o Torneio do Guadiana e logo frente ao seu eterno rival; um clube dirigido por um treinador honesto e competente e, acima de tudo, benfiquista sem igual... então não é que a Direcção vai de despedir esse mesmo treinador? Não estava no programa! A equipa precisa de tempo e não lhe deram; a equipa precisa de tranquilidade e negaram-lha; o treinador precisa de compreensão e não a teve... Ou seja, era mais que justo e até aconselhável que ficasse à frente dos destinos da equipa para aí até ao Carnaval, ou, na pior das hipóteses, até ao Natal. Assim é que devia ser. Mais uma decisão fora de tempo e a despropósito... na óptica de um sportinguista.

1.8.07

Boxe contra a violência? Ou como tirar (alguns) meninos da rua.

Hoje em dia poucos ou nenhum desporto há que não degenere em negócio. Mas concentremo-nos na essência e olhemos para o boxe como um desporto que, como os demais, se mantém como tal até entrar na via da alta competição e no que ela representa para os atletas, patrocinadores, managers, etc. Um desporto mal amado. Sendo um apaixonado da nobre arte, é óbvio que discordo da relação de repulsa que o boxe causa na maior parte das pessoas, mas percebo-a. Como entendo a relação semelhante que se estabeleceu entre o futebol e o râguebi. É inquestionável que o primeiro é paixão e beleza e o segundo é olhado com desconfiança e considerado violento pela maior parte das pessoas que se dizem interessadas pelo desporto. A vida tem destas coisas e não adianta não aceitá-las. As coisas que não entendemos ou nos causam repulsa numa primeira sensação mantêm-nos ignorantes em relação a elas. Mas que raio, como é possível considerar-se um desporto quando se vê apenas uma peleia entre duas pessoas (reparem que a palavra desportistas já não tem cabimento nesta abordagem), que se degladeiam furiosamente sem uma razão aparente? Que coisa primitiva! Quem pensa assim é, porventura, mais tolerante perante uma peleia não menos agressiva por um palmo de terra ou por um mero engano no trânsito. Nesse caso sim, já existirão razões que legitimam a violência. A verdade é que até prova em contrário, é admitido cientificamente que existe uma predisposição inata para a violência. Thomas Hobbes definiu a violência como algo que faz parte da natureza do Homem e assinalou três causas principais de contenda: competição, difidência e glória. A primeira leva o Homem a ser violento pelo ganho; a segunda pela insegurança; a terceira pela reputação. A violência faz parte do nosso quotidiano, em alguns casos indirectamente, noutros, bem mais dramáticos, directamente. Existem muitos relatos e histórias que nos levam a crer que no boxe profissional os atletas são muitas vezes usados ao invés de tirarem partido do desporto que praticam. Mas esse não é o boxe, que apesar de gostar de assistir, poderá ser considerado como um instrumento contra violência. Refiro-me, antes, ao boxe praticado por puro amadorismo e paixão. Em clubes de bairro anónimos e humildes, sem ar condicionado no Verão e aquecimento no Inverno, com equipamento gasto e balneários onde nem sempre corre água quente e onde os traseiros se sentam em bancos de madeira desconfortáveis. Refiro-me ao boxe ministrado por treinadores que merecem o nosso respeito, devotos à sua arte e aos seus jovens pupilos, interessados em fazer evoluir atletas e, acima de tudo, em formar melhores homens. Jovens delinquentes que chegam ao ginásio pelas priores razões e passado algum tempo vão, progressivamente, afastando-se dos trilhos do mal, enveredando pelo caminho do bem.
É normal que o boxe, tal como ele é conotado, exerça um chamamento superior junto dos delinquentes, dos arruaceiros, dos meninos da rua. Até onde a minha memória me possa levar, não me recordo de personalidades históricas que, com um passado de arruaceiros ou a roçar a delinquência, tenham projectado, por exemplo o golfe, o ténis ou a natação, como outras o fizeram com o boxe. Mas a experiência diz-me que muitos desses jovens são, efectivamente, recuperáveis. Parte do trabalho é facilitado porque esses jovens chegam, voluntariamente, ao boxe e pelas piores razões. Movidos pela vontade de se tornarem mais fortes, mais ferozes, de se tornarem mais habilitados para surrarem implacavelmente o próximo e de afirmarem a sua liderança na rua. Mas o boxe, aquele que ainda é desporto, esse mesmo que passou a figurar nos desportos olímpicos na 23ª Olimpíada no ano 688 a.C. e que ainda hoje se mantem como tal, exerce neles uma influência benigna, reforçando-lhes os índices de confiança e, a par disso, incutindo-lhes valores nobres que contribuem para os tornar melhores meninos, melhores homens. Camaradagem, calma, reflexão, desenvolvimento da capacidade de escutar, aprender a distinguir o “bem” do “mal” e a descarregar as raivas e as frustações em local próprio. E muita, muita disciplina.
Dir-me-ão que isso são valores que todos os desportos procuram incutir aos seus praticantes. É certo. Mas também é certo que nas sociedades modernas, em que os níveis de violência alastram de dia para dia, não me parece inteligente que não se aproveite a oportunidade de usar o boxe como instrumento contra a violência e usá-lo em proveito dos irradicados, dos que se colocaram ou foram colocados à margem da sociedade. É só uma questão de abdicarmos de alguns preconceitos e termos vontade de sermos úteis, porque os meninos da rua, esses chegam até nós. Pela parte que me toca, depois de tirar a gravata (há já uns meses que não a uso) e substituir o fato (idem) pelas ligaduras e pelas luvas, duas a três vezes por semana, dou-me satisfeito se um, basta um, em cada dez desses jovens, se tornar um homem melhor.